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Quinta-feira, 27/11/2003
Stabat Mater, de Giovanni Battista Pergolesi
Ricardo de Mattos

Aquele homem atravessou parte d'uma cidade carregando sobre os ombros um lenho pesadíssimo em comparação com Suas forças do momento. Além de percorrer um labirinto de ruelas estreitas e mal calçadas, esbarrando todo o tempo, caindo e sendo obrigado a levantar-se com presteza, precisou subir uma elevação de terra com aquele peso todo.

Alcançando o local determinado, foi jogado ao chão. Os espinhos da coroa que trazia entraram na pele do crânio. O sangue escorreu pela face e cegou-O. Caído, cabeça ferida pelas farpas - anteriormente fora esmurrada -, sol a pino, calor, sede, olhos cheios de sangue. A multidão em torno vaia e comemora.

Pregos atravessam as mãos e fixam-nas na madeira. As operações são simultâneas pois há um serviço a ser cumprido sem perda de mais tempo. Como Ele será suspenso, Seus pulsos são amarrados para que as mãos não rasguem fazendo cair o corpo. Os pés também são pregados: olha teus pés e imagina o prego necessário para prendê-los firmemente n'um suporte. Cava-se um buraco no chão, arrastam a cruz, encaixam-na neste buraco e içam-na. O corpo cede, os pulsos torcem um bocado nas cordas e os rasgos das mãos aumentam. As costas foram chicoteadas e agora são esfregadas contra os nós da madeira brutalmente preparada. O peso do corpo faz os pés escorregarem e suas feridas também alargam-se. O homem tenta suportar tudo mas ainda é homem, condição revelada pela expressão do rosto. Trançam-se a dor e a dúvida: um instante pôde ser bastante para vir-Lhe à mente Sua real condição. O tumulto dos eventos e a carga de dores embotaram a percepção racional. Portanto, cair em Si quando já condenado à morte e posto para morrer deve ter sido uma aflição a mais. Poderia conhecer Seu futuro mas saberia dos detalhes? Tudo isso é realmente necessário? Alguém aproveitará algo? Haverá de todo este transe uma conseqüência minimamente útil? E se tudo foi o lento desenrolar d'um engano? "Pai, por que Me abandonas"?

Aquele homem questiona sem lamentar. Sabe que o lamento é precipitado e tem objecto parcial. Por que lamentar agora se logo o problema agravar-se-á? Foi crucificado a tanta dor já não mais sente pois até Sua sensibilidade foi superada. A dor precisa ser agravada para ser lembrada e para examinar se Ele ainda vive. O costume mandava quebrar as juntas, mas como Ele parecia ter sucumbido, o lanceiro apenas atravessa-Lhe o lado. Mostra-Se ainda com vida, tem sede, pede água e dão-Lhe vinagre. Se tivesse proferido uma palavra de lamento antes, precisaria repeti-la agora quando um gaiato encosta a escada na cruz, fazendo-a trepidar, e sobe para dependurar um cartaz com fúteis dizeres.

O homem é executado diante de Sua mãe. Fale-se e ela não escutará; mostre-lhe e ela não enxergará. Tão envolvida com o sofrimento do filho a ponto de não cogitar acerca da ferocidade do acto. Vê o sangue escorrendo e esquece de quem fê-lo vazar. Mesmo sendo a mãe, é com má vontade que a deixam alcançar a base da cruz. "Estava a mãe dolorosa, lacrimosa junto à cruz da qual pendia seu filho".

Como fazer a música transmitir tudo isso? Não basta musicar a oração, o fiel precisa de alguma forma presenciar a cena descrita. O compositor deve ter a intenção de transportar o ouvinte ao Gólgota e fazê-lo testemunhar o episódio. Não é um episódio qualquer, mas o principal de sua fé.

O cânone católico inclui uma oração para lembrar os fiéis deste momento de supino significado. Stabat mater dolorosa/ juxta crucem lacrimosa/ dum pendebat filius... Atribui-se ao franciscano Jacapone da Todi (m. 1.306) a elaboração desta sequentia somada em 1.727 às quatro sobreviventes ao Concílio de Trento realizado no século XVI. O Concílio excluiu-as devido às alterações provocadas nos textos e melodias do canto gregoriano tradicional. As outras permitidas são Victimae Paschali, Veni Sancte Spiritus, Lauda Sion e o já comentado Dies Irae. Entretanto, os dominicanos incluem nas suas celebrações natalinas a sequentia não oficial Laetabundus.

Coube a Giovanni Battista Pergolesi (1.710/1.726) a autoria de uma das peças mais representativas do barroco italiano, do mais expressivo Stabat Mater já composto. Este compositor, nascido no Vaticano e radicado em Nápoles, finado aos 26 anos deixou muitas obras n'este pouco tempo de vida. Antes tivesse vivido mais e composto menos. A sua desorganização incumbiu os críticos, séculos depois, de tentar separar as obras autênticas das atribuídas. É dele também a opereta-cómica La Serva Padrona que ganhou produção brasileira dirigida por Carla Camurati.

O Stabat Mater encomendado pelo Duque Madolini foi a última peça de Pergolesi, concluída no ano de sua morte. Composto para duas vozes - soprano e contralto -, dois violinos, viola e baixo contínuo. Talvez das execuções originais tenham sido encarregados os famosos castrados - castrati. O filme Farinelli é sobre um dos mais famosos destes músicos. Outro deles aparece n'uma cena de Ligações Perigosas. Difere do contratenor. Os testículos dos castrados eram inutilizados visando manter a voz original: um castrado poderia ter a voz de soprano, mezzo-soprano, ou contralto. O contratenor é o homem "inteiro" cantando em falsete, i. e., imitando a voz feminina. Tenho um CD com músicas medievais no qual, para tentar conferir autenticidade às gravações, recorreram aos contratenores em algumas delas. A audição vale para o novo conhecimento porém não é algo marcante.

Pergolesi distribuiu o texto em doze trechos. O primeiro e o último foram escritos em Fá Menor, o que confere coesão ao ciclo. A variação da tonalidade e da marcação do compasso nos trechos intermediários evita a monotonia, acentuando ou atenuando a dramaticidade. Os ornamentos das vozes são devidos mais ao estilo elaborado que a uma aproximação operística, como é o caso do composto por Rossini (1.792/1.868). Possuo três gravações distintas, sendo a melhor aquela com a contralto Teresa Berganza.

A obra é um retábulo musical. O primeiro trecho inicia com a aproximação de alguém. Não é a Virgem, pois ela já estava lá, e sim um narrador quem atinge o local do suplício e fala o que vê. Ainda melhor, considerando o tempo verbal, lembra o presenciado: "Estava a mãe dolorosa/ lacrimosa junto à cruz/ da qual pendia seu filho". A narrativa começa após a conclusão do momento crítico, pois se o Cristo está vivo, não será por muito tempo. Nas segunda, terceira quarta e sexta partes, o observador cogita acerca do estado de espírito de Maria: "Ó quão triste e aflita/ estava a bendita/ mãe do unigênito (...) Viu seu doce filho/ morrendo, desolado/ ao entregar Seu espírito". Quem já presenciou uma mãe no velório ou enterro do próprio filho consegue aproximar as sensações. A ligeireza do quarto trecho é de enganosa leveza, não passando de um fôlego para o drama seguinte, voltado a refletir a respeito do impacto da visão sobre os circundantes: "Qual é o homem que não chora (...) Quem não poderia entristecer-se/ ao contemplar a mãe piedosa/ sofrendo com o filho?".

Se na primeira metade do Stabat Mater o fiel contempla os instantes finais da Paixão, na segunda ele deseja participar das dores como forma de aproximação de Cristo. Sofrer com Ele o martírio, declarando irrestrita fidelidade: "Eia ,Mãe, fonte de amor/ Faça-me sentir a violência da (sua) dor/e que contigo eu pranteie". Até o sétimo trecho mantém-se certa sobriedade. Sobriedade barroca, mas sobriedade. Sofrimento contido, de força interna. No dueto do oitavo trecho é que temos a explosão da dor, tão forte a demonstrar a insuficiência da força humana em contê-la. Pergolesi concentrou n'este trecho as notas mais altas, os ornamentos mais rebuscados, toda a tensão até agora represada. Daí a impressão de prostração do nono trecho. A tempestade passou, as conseqüências são apuradas, mas ainda vemos relâmpagos esporádicos. Por toda esta segunda parte, em suma, o desejo do crente é partilhar agora o sofrimento de Jesus para depois usufruir o Paraíso ao Seu lado.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 27/11/2003

 

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