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Sexta-feira, 5/12/2003 Considerações Sobre a Segunda Divisão Poética Daniel Aurelio Gosto de poesia. Como noventa e nove virgula nove por cento da população minimamente letrada, cometi meus sonetos capengas. Donde se conclui qual é a nascente do desinteresse mercadológico pela poesia profissional e editada: a graça está, necessariamente, no caráter autodidata que a norteia. Em qualquer cidadela remota, você é capaz de identificar os tipos sociais mais comuns: tem o bêbado, o padre, a fofoqueira, tem o poeta também, aquele ali, meio pancada. Aliás, diga-se, não entendo muito da seara técnica que não raro a corrompe. Até pouco não sabia distinguir, com precisão, a cisão formal entre um poema e uma poesia. Tenho a tendência de apreciar poetas que ousaram ser rima e verso e caíram na própria armadilha lírica. Leia-se, aqui, Dylan Thomas, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, Augusto dos Anjos e Mario Faustino. Nem tanto pelo legado - ora impecável, ora desproporcional - que deixaram. É que eu tenho ainda essa cisma, tola, de enxergar poeta e poesia como a prova tácita da vida em erro, da centrifuga autodestrutiva, da navalha em verso — por isso estranho os concretos, engenheiros de uma anticiência, inexata e feroz. Aviso logo que não sou Ítalo Moriconi ou Ivan Junqueira, mas caíram-me dois livros de poemas em mãos. Os volumes clamavam para serem resenhados. Prometo analisá-los como quem grafa (entre o ávido e o verborrágico) confidências em um diário. Máquina de Escrever Que o poeta me perdoe, mas o nome Armando Freitas Filho sempre pertenceu a segunda divisão do texto nacional. Em seu mais recente livro, um cartapácio de 607 páginas com toda sua obra reunida e revista, Freitas Filho mostra o que aprendeu com modernistas e concretos, principalmente com os ídolos Drummond, Bandeira, João Cabral e Gullar. Bebeu bem. E de boa fonte. Aqui mora seu vício, sua virtude e seu erro de cálculo. Em um vôo plano, é imperceptível diferenças conceituais ou alguma centelha de inventividade no catálogo que vai de "Palavra" (1963) até "Numeral/Nominal" (2003). Uma erotização aqui, alguma temática social acolá, namoro rotineiro com os colegas mais ilustres acima. Cada guinada em sua época devida, nada fora do eixo. É presumível que a tal "revisão" tenha tornado homogêneo e cimentado paisagens outrora mais intensas. Tudo funciona direitinho, adaptado e bem construído, coisa de quem devorou a cartilha e o abecedário da poesia pós-parnasiana. Serve, por sinal, como um ótimo cursinho para fabricação de versos em escala industrial (ou, trocadilho cruel, de como ser uma "máquina de escrever"). Basta decorar e aplicar, na íntegra, a formula empregada nele. Na verdade, "Maquina de Escrever" não tem apelo, não tem cor, nem cheiro. Não agride. Não emociona. Eu não recitaria seus versos para uma namorada, a não ser que desejasse entorpecê-la de tédio. Fosse algum teórico da literatura, não me disporia a procurar entendê-lo dialeticamente. Ou seja, a compilação não faz a ínfima diferença. Talvez por isso seja apenas Armando Freitas Filho. E não Gullar, que dispensa o prenome para ser reconhecido. Martim Cererê Longe de mim, ignóbil colunista quinzenal, querer demolir um ícone modernista como o poeta Cassiano Ricardo (1895-1974). Mas para quem convive diariamente com a leitura de Marcel Mauss, Malinowski, Claude Leví-Strauss e Gilberto Freyre, considerar "Martim Cererê" um marco das raízes da brasilidade, como tenta persuadir os comentários de orelha e o projeto gráfico do livro, é um tremendo engano, um despropósito. Não é antropologia, é até ofensivo ser taxado como tal, portanto, não pode ser avaliado pelo prisma teórico. É, com a licença do chavão, antropofágico. Demasiado antropofágico. A imagem e semelhança, em grau superlativo (não qualitativo), de Oswald de Andrade ou Portinari. Portanto, é arte, uma interpretação da vida sob o julgo estético. O que é ótimo. Isto posto, adentremos ao universo do poeta. É alarmante abrir um livro cuja dedicatória é mirada ao filósofo, escritor e líder católico Plínio Salgado (1895-1975), tido como a matriz ideológica do fascismo tropical. Eram amigos, companheiros da facção nacionalista do Modernismo e da luta integralista. O voto carinhoso é justificado. Salgado, patriarca da Ação Integralista Brasileira (AIB), virou guru de ideologia derivada dos regimes totalitários da Europa Ocidental e candidato a presidência da República. Cassiano Ricardo, entretanto, preferiu caçar o mito da força tupiniquim via literatura, transformando-se em polaroid de uma época, tema de estudo e influência decisiva para um grande movimento artístico como o tropicalismo nos anos 60. É evidente e sabido, quiçá consciente, o exagero das suas elegias a formação do povo brasileiro. O cenário colorido e exótico que descreve, por exemplo, é tão idealizado que constrangeria Carmem Miranda. Mas é um documento histórico de respeito sobre o Modernismo, ao menos para certa turma atraída pelo clichê de Brasil, que gringo tanto aprecia. Não deixa, portanto, de ser um belo exercício poético. Fez muito bem o Cassiano, ao desviar-se do holofote da política. Nesse ponto, a poesia é indolor. Falso Brilhante Creio que Cassiano Ricardo e Armando Freitas Filho pecaram, ao menos, em um aspecto: cortejavam a eternidade em terreno minado e efêmero. No final, quase desejei ser Alvares de Azevedo ou um desses ultra-românticos embriagados. Lembrei, astuto, da tuberculose e da overdose. Afinal, gosto de poesia. Mas como seu amante voyeur. Escrevo com um nó doído no peito, já que são dos ótimos poetas: impossibilitado, porém, de traça-lhes um perfil acadêmico — seria desqualificado pela sua própria natureza, introspectiva e imponderável — resigno-me a deleitar poesia ao meu modo insensato de enxergá-la, como um diário datado, de páginas amareladas, perdido em alguma caixa de sapatos no guarda-roupas do passado. Fruto de uma paixão qualquer. Não parece ser esse o caso dos nossos bem amados poetas, dignos de honras, antologias e reedições caprichadas.Enquanto isso, o bardo verdadeiro, a quem deveriamos reverenciar, agoniza em papel menos nobre. Para ir além Daniel Aurelio |
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