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Segunda-feira, 1/12/2003
Vidas Secas e o nosso atraso histórico
Márcio Salgues

O que é o homem? O que era o homem antes desse estágio da evolução? O que o diferencia dos animais? O que faz desse homem um indivíduo, um ser com personalidade?

Essas perguntas básicas inerentes ao ser humano parecem encontrar alguns traços de respostas no personagem Fabiano de Graciliano Ramos (1892 - 1953) em Vidas Secas. Não há o que eu possa acrescentar a um clássico da nossa literatura por tantos já interpretado, analisado e adaptado para o cinema em 1963 por Nelson Pereira dos Santos, sendo um dos marcos da implantação do cinema novo no Brasil junto com Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Mas pretendi me apegar aqui a uma brevíssima reflexão sobre a nossa sociedade na figura, sempre atual, do Fabiano.

A excelência da natureza está na ciência, no saber. É a exploração dessa ciência que conduz o homem à evolução. Considerando as primeiras sociedades humanas pré-históricas, os chamados homens das cavernas, tal como imaginamos, símios peludos e corcundas emitindo sons guturais e grunhidos animalescos, que seríamos nós em um estágio primitivo da evolução há dois ou três milhões anos, hoje somos seres evoluídos, ou, pelo menos, bem mais evoluídos.

Não considerando aqui as mudanças físicas do processo, é perfeitamente possível perceber que os tais "homens das cavernas" ainda existem hoje. Podemos, por exemplo, observar os poucos grupos silvícolas e aborígenes que ainda vivem isolados da "civilização" na América do Sul e as ilhas Polinésias no Pacífico sul, e veremos sociedades pré-históricas, exceto pela aparência física, já que esses homens não se parecem com os símios. E, nos limitando à abordagem do próprio Graciliano temos, aqui mesmo no Brasil, nossos homens pré-históricos. Nas capitais e suas periferias, bem como adentrando o interior do país.

O que nos diferencia desses homens senão o conhecimento menos limitado da ciência? A filosofia sobre todas, que nos ensina a pensar e a questionar os mais recônditos cantos da alma humana. E daí à física, matemática, astronomia, química, biologia e tantas outras ciências que sempre existiram e que, à medida que tomamos conhecimento delas e passamos a aplicá-las de forma prática evoluímos ao que somos hoje.

A propósito, o termo "pré-histórico" é bastante preciso. Indica aquilo do qual não se deixou registro suficiente para construir uma história de forma precisa. Desses povos ancestrais nos sobraram apenas indícios de como eram e de como viveram. Foram sociedades de indigentes. Pessoas das quais não sabemos nada. Sem nomes, sem famílias, apenas seres ancestrais, pré-históricos... Sem história. E o caminho que percorrem nossas gerações parece nos levar a uma pós-história, como se vivêssemos um triste interlúdio existencial.

No sertão de Vidas Secas encontramos um homem pré-histórico, o Fabiano, sua fêmea e sua prole. O isolamento em uma região inóspita e esquecida impediu sua evolução. Eles têm uma linguagem rudimentar e a escrita não foi desenvolvida. Têm uma forma própria de se comunicar. E não seria apenas o acesso à tecnologia e aos bens e produtos do mundo moderno que lhes permitiria evoluir, mas o acesso à ciência. É a partir dela que o fenômeno ocorre. E a ciência da personagem central limita-se à caatinga, à caça de preás, ao êxodo constante. Em outras palavras: limita-se a se manter vivo, "adiar a morte" que os rodeia o tempo todo nesse mundo à parte da chamada civilização.

Mantendo-se o homem na ignorância, mantém-se a escravidão do espírito e mesmo a escravidão física. Interrompe-se o processo evolutivo. Interrompe-se o ser, o processo de existência. Aliena-se-lhe. Amputa-se-lhe a individualidade. A ideologia do antigo império romano do "dê-lhes pão e circo", é a mesma que prevalece não só nos "impérios" e ditaduras atuais, mas também no populismo político que tem assolado nosso país há anos, eternizando assim a indústria da miséria.

Apesar da larga abrangência do romance de Graciliano Ramos, tomo humildemente este ponto de vista, onde encontramos um exemplo explícito do impedimento imposto ao processo de crescimento do homem - aqui ilustrado na paisagem árida do sertão nordestino. Poderia ser ilustrado às margens do Rio Amazonas, no Pantanal mato-grossense, nos morros cariocas ou nas favelas e palafitas pelo Brasil afora.

Apesar das inúmeras demonstrações de boa vontade de alguns, a maioria dos que detém a competência administrativa para transformar os nossos Fabianos em homens evoluídos, tirando-lhes do estágio primitivo por meio do conhecimento, ainda se omite. Ainda que os Fabianos estejam em toda parte, mesmo nas nossas calçadas, a eles se oferecem esmolas, entretenimento barato e, quando sim, a educação de má qualidade.

No nosso mundo moderno e pragmático, poucos conseguirão prosseguir por conta própria. Passamos assim por uma mesquinha "seleção natural" às avessas, uma evolução inversa e paradoxal aos chamados tempos modernos. E o pior, com conseqüências desastrosas para a sociedade como um todo em um futuro não muito distante, formando-se assim uma geração pós-histórica, que acabará por perder seus próprios registros em nome da sobrevivência enquanto se adia própria morte.

Graciliano continua atual.

Para ir além





Márcio Salgues
Recife, 1/12/2003

 

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