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Quarta-feira, 3/12/2003
A normalidade sedutora d'Os Normais
Lucas Rodrigues Pires

Os Normais - O Filme veio para fechar um ciclo de três anos do humorístico da televisão que se encerrou no início de outubro. Como não poderia deixar de ser, o filme segue à risca os moldes da televisão, com os personagens falando abertamente palavrões, vivendo situações tragicômicas e, em muitas vezes, vulgarizando o momento pelo excesso de palavrões, mas nunca sem perder a graça. Na TV, há as constantes conversas dos personagens com o espectador, mas tal artifício foi abolido no filme.

Fernanda Torres e Luis Fernando Guimarães formam o casal "normal". O filme volta no tempo para mostrar como eles se conheceram e acabaram por ficar juntos. A idéia dos roteiristas Fernanda Young e Alexandre Machado (aliás, atores, roteiristas e diretor são os mesmos na televisão e no cinema) foi muito interessante e teve uma sacada genial, pois voltando no tempo o espectador verá algo que já sabe de antemão no que vai dar. E, querendo ou não, facilita a compreensão de piadas, situações e intenções que o filme possa apresentar. Somou-se a tudo isso um novo casal (Evandro Mesquita e Marisa Orth) que, se não têm uma veia cômica digna do casal principal, conseguiram não comprometer por completo o humor do filme, que é o ponto que segura a trama.

Impossível não citar aqui, num texto que se supõe crítico, a assumida (e não poderia deixar de ser) estética televisiva, cheia de cortes, planos/contra-planos, planos fechados e, tal qual Fellini, a incorporação do falso como representativo do real (cenários de isopor, fundos pintados, perseguições de carros de miniaturas etc. - tudo que a televisão impõe como forma de baratear e mesmo para criar um estilo próprio; a Rede Globo tem essa filosofia em todos seus seriados cômicos, vide A Grande Família e o novo Sexo Frágil). Essa discussão entre cinema e televisão é antiga e tem se acirrado cada vez mais, mesmo porque muitos programas de televisão estão migrando para o cinema e essa tendência só tende a se intensificar (Casseta & Planeta e Sandy & Júnior estão aí para comprovar).

Resolvida a questão da adaptação ao cinema - que, no fundo, em razão de já haver um formato pré-estabelecido oriundo da televisão, acaba por não ser uma adaptação mas sim uma transposição - compete ver como o enredo se estabelece na tela grande e como aspectos característicos do programa foram resolvidos no cinema.

Confesso que, num primeiro momento, o excesso de palavrões muito me decepcionou e tirou o brilho que a história tem. A idéia é boa, o roteiro é excepcionalmente bem-montado e não tem furos, abre para possibilidades imensas de piadas e situações cômicas que levam o filme a ser engraçado e comovente simultaneamente. Conta com um casal de muita química em ação e que já tem cumplicidade suficiente para grandes momentos. O fato de haver "caralho", "merda", "puta que pariu" a cada minuto sendo dito, e ainda uma discussão vulgar demais sobre os tamanhos de xoxotas e paus - sendo mini, médio e super - gerou em mim certo desconforto inicial. Soou como uma apelação para se atingir a comicidade, sem se dar conta de que o filme conseguiria ser cômico não se apoiando nesse estratagema. Mas, quando revi o filme, percebi que essa é uma característica do programa e dos personagens que marcaram Os Normais. Eles são pessoas normais que falam palavrão abertamente, como quase todo mundo. Ainda, nosso choque em ouvir palavrões é porque eles são ditos em português e o impacto é muito maior do que em outra língua. Afinal, todo filme americano está repleto de "fuck", "shit" e outros piores e nós nem estamos aí. Para nós, brasileiros, o palavrão em inglês é divertido; o palavrão pronunciado em português, uma ofensa. É preciso se despir desse moralismo excessivo (assim como o filme poderia ter se despido do apelo excessivo ao palavrão gratuito) para curtir Os Normais com o que ele tem de melhor.

Os Normais - O Filme é uma aula de como resolver problemas. Assistindo ao filme veio-me à cabeça idéias de Glauber Rocha (calma, não quero comparar Os Normais com nenhum filme de Glauber; afinal, são propostas antagônicas). O cineasta de Terra em Transe dizia que temos de assumir e incorporar nossa precariedade de recursos para inventar uma linguagem que seja revolucionária e legítima contra o cinema industrial dominante. Ou seja, transformar nossa inferioridade econômica e técnica em força nas imagens e no discurso. Simplificando e adaptando aos tempos de globalização atuais: é preciso deixar de lado um cinema baseado em efeitos e nos voltarmos ao cinema de imagens e palavras, isto é, ao cinema que prioriza o roteiro.

Os Normais dialoga abertamente com essa precariedade de recursos e a transforma em potência. Cena digna do que se fala aqui é a perseguição de carro da polícia a Rui. Como fazer uma perseguição realista com orçamento baixo? Impossível. Então, vamos radicalizar, assumir essa nossa impossibilidade (que é financeira e não técnica ou artística, é bom frisar àqueles que crêem na incapacidade brasileira de se fazer bom cinema) e criar o farsesco, o tom não-realista para potencializar o humor, o cômico - objeto maior do filme. Resultado: uma seqüência fantástica que alia humor, ótima sonorização (além do som ambiente, a música "Vida Louca Vida", do Lobão, ao fundo) e montagem cativante (carros miniaturas nas ruas do Rio movidos por mãos, cara do Rui dirigindo e fugindo) que fazem o espectador refletir sobre o próprio ato de se fazer cinema e questionar as grandes perseguições do cinemão americano em que tudo que se vê é falso, recriado digitalmente e em estúdio (o último Matrix mostra que, sós, os efeitos não enchem barriga).

Outro ponto alto do filme está na caracterização e na gradativa construção da identificação dos protagonistas. Eles não se conhecem até o dia do casamento de ambos - Vani com Sérgio, às 18 horas, e de Rui com Marta, às 20 horas, na mesma igreja. De uma situação banal, Vani pedir um pouco de arroz para os convidados poder jogar sobre os noivos para dar sorte, surge o encontro dos dois e se inicia um processo de identificação que só é possível porque nós, espectadores, já conhecemos a personalidade, os tiques, sonhos e anseios de cada um previamente. Esse pré-conhecimento permite que possamos captar no ar esse jogo de interesses mútuos, de olhares, de gostos, de intenções, de sorrisos e até de pensamento, fazendo do filme uma experiência mais cúmplice e, conseqüentemente, mais prazerosa (fazendo uma metáfora com um elemento do próprio filme, seria como se nós ouvíssemos sininhos ao perceber esse processo no decorrer da narrativa).

O filme constrói essa aproximação de interesses e de personalidades de Vani com Rui ao mesmo tempo em que mostra o descompasso entre os casais verdadeiros. Marta é intolerante e incompreensível, além de ser infiel; Sérgio é banal, também infiel, fraco e medroso. Mas Vani e Rui têm aquilo que fez do seriado (e agora também do filme) um sucesso: ambos têm bom humor e sabem rir das situações e de si mesmos. Há cenas que ilustram isso com sensibilidade e muito humor, como a conversa no telhado ao lado de um cigarro e de uma Coca-Cola light, a dança de um flashback em meio à confusão dos casais ou a tentativa de pegar as luvas de Vani em cima do coqueiro. Claro que a maioria das cenas são preparadas para uma piada, uma situação cômica a sair a qualquer hora. E isso é talento dos roteiristas e dos atores, que sabem como fazer aquelas palavras soarem engraçadas aos nossos ouvidos (apesar de que às vezes um tanto vulgares). Algumas tiradas são excepcionais (por que o barco não afunda, Vani e Sérgio na carruagem em meio ao trânsito carioca, franguinho assado, borrachudo, a seqüência em que Sérgio vê Vani e Rui por trás da cortina etc.) e o roteiro tem uma cadência ritmada a criar algo inusitado e que aproxime cada vez mais um do outro.

A cena final, do beijo no cais ao som de Frejat, é linda e comovente porque define numa imagem e numa música a vida daquelas duas almas que estavam destinadas à perdição (não há dúvidas que os casamentos iriam fracassar), mas, num toque do destino, se esbarram e encontram o amor e a cumplicidade que os unirá. A história de Vani e Rui é absolutamente normal, tal qual a minha, a sua, do seu amigo etc. Mas é isso mesmo que a torna especial e faz desse Os Normais um filme diferente. Cativante. Engraçado. Sedutor. Uma bela despedida desses personagens, pelo menos até a sua seqüência que, a contar pelos números, deverá vir em breve.

O filho humano de Deus

Uma surpresa interessante foi ver Maria, Mãe do Filho de Deus, sob direção de Moacyr Góes (que lançou recentemente também Dom). Quando é lançado um filme que conta a trajetória de Jesus, o maior símbolo da cultura ocidental cristã, com a participação do popstar padre Marcelo Rossi, só podemos esperar um filme de doutrinação ou, como a revista VEJA escreveu em matéria de capa quando do seu lançamento, um filme de contra-ataque ao crescimento evangélico no país. Pois bem, Maria consegue fugir dessas rotulações (o que seria uma limitação) ao retratar um Jesus mais humano, em crise quanto a seu papel no mundo como filho de Deus. Nesse sentido, ele se aproxima mais do Jesus de José Saramago em O Evangelho Segundo Jesus Cristo do que do profeta que a religião propaga. Claro que as passagens mais significativas dos evangelhos estão lá: a ressurreição de Lázaro, a quarentena no deserto e a tentação do demônio, a água transformada em vinho durante o casamento, a aparição do Anjo Gabriel (interpretado pelo padre Marcelo) a Maria e José, os três reis magos etc. Em síntese, a história mais monumental e extraordinária de nossa cultura está lá, mas este Jesus retratado é, acima de tudo, humano, ambíguo e em conflito consigo mesmo à medida que não entende o que quer dele Deus.

Emblemático dessa visão é o final, quando, na cruz em seus últimos suspiros, Jesus teria pronunciado ante a multidão que lhe crucificara: "Pai, perdoai-os. Eles não sabem o que fazem". No filme, tais palavras não se encontram. O que Jesus faz é questionar seu destino. "Por que, meu Pai? Por quê?", diz ele, quase raivoso, antes de sucumbir.

A meu ver, há só uma explicação plausível para isso. O filme é contado pelo olhar de Maria, a mãe de Jesus, e toda a visão da trajetória dele é vista sob seu ponto de vista. Assim, o Jesus que vemos é como Maria o veria - não o salvador dos homens, mas simplesmente seu filho. O amor materno aqui estaria acima de tudo, mesmo de Deus. A incompreensão e não-aceitação do destino do filho é o tom de Maria, Mãe do Filho de Deus, mesmo porque o próprio título do filme traz ela e não seu filho como protagonista.

Se a direção do filme realizou isso conscientemente ou não, não sabemos, mas foi exatamente tal fato que salvou Maria da mera reprodução de uma história religiosa (já por demais contada) filmada no Brasil, com atores nacionais globais.

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 3/12/2003

 

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