|
Sexta-feira, 13/7/2001 Pequeno contato com a civilização Rafael Azevedo A primeira impressão que se tem de Amsterdã é péssima; adolescentes de todas as idades e mochileiros de todas as partes do mundo, os chamados "homens (e mulheres) caramujos", sem tomar banho há uma semana, e inúmeros imigrantes de todas as ex-colônias européias possíveis e imagináveis, com igual desprezo pela higiene pessoal, infestam a estação da cidade. Alguns destes passam com olhar interessado, fitando sem qualquer pudor as malas dos viajantes mais desavisados. Aos que encaram as minhas, fazendo pose de "mau"... dou risada - ah, se eles passassem uma semana na selva selvagem que é o Brasil! Mas apesar disso tudo respiro um ar diferente, percebo uma liberdade no ar, algo que já veio comigo desde a fronteira com a Alemanha, quando o guarda antipático alemão, fardado e carrancudo, foi substituído pelo bom e velho hippie holandês, sem uniforme e de cabelo comprido, que me pediu o bilhete com um largo sorriso. Ao sair da estação, uma epifania - percebo-me cercado de edifícios esplêndidos, entre eles o da estação. Para admirá-los satisfatoriamente tenho que ignorar a multidão de mendigos e scumbags que se amontoa na calçada - nada muito difícil para qualquer um que já visitou o centro de São Paulo. Apanho um táxi, e da estação até o local onde me hospedei sou surpreendido por uma experiência estética em cada esquina - seja na forma das espetaculares holandesas, zunindo pelas ciclovias em suas bicicletinhas, seja na forma das incríveis casas de quatrocentos anos (ou mais) que ainda são maioria no centro da cidade. A arquitetura da cidade é espetacular. A de suas habitantes é fascinante. Afortunadamente, pego bom tempo nesta minha primeira vez por lá; um holandês me disse que aquilo era "muito especial" para eles. De fato, não condizia com a imagem da cidade que tinha, nem com a que posteriormente vim a ter - um sol de rachar, as pessoas de bermuda pelas ruas, o Vondelpark lotado... nada melhor que caminhar por aquelas ruas históricas, se perder por vielas de nome impronunciável. Faço e refaço inúmeras vezes o caminho que liga as duas principais praças da cidade, a Rembrandtsplein e a Leidseplein. No caminho, inúmeras lojas de imigrantes árabes e turcos, vendendo falafel e outras baboseiras junk, bares decadentes e muita, muita gente de bicicleta.Ao mesmo tempo, instalados em prédios históricos, livrarias, pubs aconchegantes, e os inevitáveis coffeeshops, sempre lotados de fumaça e jovens de todos os lugares, muitos brasileiros, mas mais americanos, e sempre um som techno ensurdecedor dentro deles... mais adiante, na Kerkstraat, as famosas lojas de Magic Mushrooms, e produtos afins... sinto-me tentado a adquirir um "havaiano" e um "mexicano", mas deixo pra outra oportunidade. Resolvo esticar meu passeio até a Museumplein, a praça que abriga os principais museus e a Concertgebouw, principal teatro da cidade e sede de uma das mais notórias orquestras do mundo. Para chegar lá, abandono a zona central da cidade, que "termina" na Leidseplein, e atravesso uma ponte que me leva a uma parte mais residencial, com prédios mais modernos, e alguns poucos estabelecimentos comerciais, que já são outros: hotéis, supermercados, pizza-huts, além dos agora ocasionais coffeeshops. Ao aproximar-me da praça, passo pelas arcadas do Rijksmuseum, o mais importante museu da cidade, onde algum doidivanas toca músicas medievais com um instrumento de sopro, mas que me causa mais epifanias - estar sob aquele prédio fantástico, vendo aquelas colunas tão antigas, ouvindo uma música provavelmente da mesma época em que ele foi construído certamente evocou sensações vívidas em mim, que sou apreciador de tudo que se relaciona à História. Saindo deste pequeno túnel, vislumbro a praça - fantástica, apesar de seu design "moderno" (leia-se linhas retas e uma simplicidade hedionda nas formas), um lugar muito acolhedor, onde pessoas jogam bola e deitam na relva cercadas por alguns dos prédios mais bonitos que já pude ver na minha vida. Atrás, a quase excessiva elaboração do Rijksmusem; à frente, a elegância imponente da Concertgebouw, e num dos lados o Stedelijk Museum, o museu de arte moderna. No outro lado, o museu Van Gogh quase destoava de tudo, pequeno e feio (leia-se moderno) em meio a tudo isso, mas ainda assim se encaixava à praça, tamanha a harmonia que ali reinava. Aquilo era um lugar, acima de tudo, de convivência social, como há muito não vejo aqui no Brasil. Um lugar para as pessoas se integrarem, sentirem o que é viver numa Sociedade de verdade, com S maiúsculo. Numa tarde agradável como a que fazia, pessoas jovens e velhas jogavam bola, outras aproveitavam o sol deitadas na relva, mais adiante algumas conversavam nos banquinhos... e tudo ali parecia fluir de uma maneira que nunca havia visto até então mas que, de certa maneira, parece acontecer em menor escala em todas as cidades européias, inundadas com aquelas deliciosas e reconfortantes sensações de que, no matter what, a vida ali continua, como tem feito há dois mil anos ou mais. Rafael Azevedo |
|
|