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Sexta-feira, 19/12/2003
Elogio Discreto: Lorena Calábria e Roland Barthes
Daniel Aurelio

Há um bocado venho insinuando este texto. Escrevo ou não escrevo? Deleto. Arrependo-me. Não abro o editor de textos. Apequeno-me.

Não sou Henry Miller. Nem Armando Nogueira.

Vou, não vou. Meia volta. Retrocedo. Decido escrever.

Pense em dois entrevistadores da televisão brasileira. Agora, deixe-me adivinhar: Jô Soares e Marilia Gabriela. Fácil.

Há pelo menos duas décadas, o gordo e a loira disputam a coroa. E o consenso é tão nítido e esmagador que Jô e Gabi (note a intimidade!) chegaram a estrelar, em divertido dueto, um comercial de cerveja, lá pela metade dos anos 90. O primeiro, humorista genial e dublê de escritor, é quase uma instituição. Conhecemos ao menos meia dúzia de cidadãos que só vão para cama "depois do programa do Jô". Sentem-se mais cultos e menos retos. A segunda é, se não uma paixão, um faceiro flerte nacional: artistas a veneram, seja qual for o seu quilate. E não há quem não sonhe em estar de frente para a Gabi, continente de charme e brilho coletivamente sugestionado.

Não serei eu mais um a vociferar contra eles. Até porque não é necessário agredi-los; ao menos para que têm TV a cabo, trocar o canal é um gesto que se basta. Ou pronunciar um nome: Lorena Calábria, a mais inteligente e hipnótica apresentadora do Brasil.

À frente do "Ensaio Geral", do canal Multishow, Lorena dá um espetáculo de profissionalismo: é discreta, simpática e, mais importante, uma aguda conhecedora de música brasileira (colaborou por muito tempo com a extinta revista ShowBizz). A jornalista, aliás, parece sofrer com a Síndrome Paula Toller - o tempo a deixa cada vez mais bela.

Lorena é capaz de argüir, com a mesmíssima competência, doçura e flexibilidade, com músicos obsessivos (Ed Motta), polemistas (Lobão) ou alvos da chibata sarcástica da crítica (Jorge Vercílo). Sem juízo estético, dá voz ao entrevistado - afinal o que importa. Afinal o que falta a outros programas similares.

É preciso olhar os coadjuvantes, aqueles que dão cor às peripécias do gênio, com carinho. É um dom inestimável. Pergunte ao Dedé Santana, eterno escada das piadas dŽOs Trapalhões, o quão difícil é o trabalho de servir e preparar terreno. É algo que exige um exercício de ascetismo que estará sempre distante da resposta emocional do público.

Pede-se equilíbrio. Dominar a arte da concisão verbal e da economia dos gestos. Saber auscultar o coração do interlocutor. Lorena Calábria faz tudo isso e ainda nos brinda com o sorriso mais inspirador da tv brasileira. De petrificar.

E como é linda! Não aquela beleza absoluta, capa de revista, que chega a oprimir a plebe. Lorena é uma mulher assim que, realmente, carecia de uma verve shakesperiana para revelar.

Limito-me, pois, a suspiros. E algumas trovas dŽamor subentendidas.

O Neutro, de Roland Barthes

O "descolado" estilista Marcelo Sommer, na sempre fulminante seção "5 luxos e 1 lixo" da Superinteressante, apontou suas predileções e repulsas literárias. Restringiu-se a seu metier, a moda. Entre a adoração por compêndios do ofício e bizarrices como "Balada Forte" de Érika Palomino, Sommer, a respeito de seu "lixo" escolhido, o clássico "Sistemas da Moda" de Roland Barthes, saiu-se com uma ótima: "Este livro é insuportável. Parece um livro de química, cheio de fórmulas".

Reconheço que não deve ser fácil. O sujeito vai até a livraria, dirige-se à seção de "Artes e Moda" e, grana extra no bolso, decide levar todos os livros que contenham as palavras "Fashion" e "Moda". Não é improvável que um atendente tenha alocado o ensaio de Barthes ali (trabalhei três anos em livraria, sei como é). Espera-se amenidades e as últimas tendências Milão-Londres-Paris; depara-se com "química" e "fórmulas".

Sommer, seja bem-vindo ao pós-estruturalismo aplicado às formas de comunicação: a semiótica. Claro, vou com calma.

Barthes, o antípoda do intelectual emburrado, o pop-star do pensamento parisiense da década de 60, também não colabora: quantos não foram aqueles que, ao grudar os olhos em "Fragmentos do Discurso Amoroso", não pensaram tratar-se de um legítimo romance de verbo doce da linhagem Sidney Sheldon/Danielle Stell?

Acontece o mesmo com "O Neutro", íntegra de um de seus cursos no portentoso College de France, o Olimpo da academia francesa. Diante de um título atraente desses, que pode fazer o leitor distraído?

Tratemos do livro, enfim: assim como a ambição dos estruturalistas era o que há de imutável e linear nas articulações da sociedade, Barthes também está em busca de uma "fórmula" (captou, Sommer?) que aqui se traduz no "desejo do Neutro". Mais do que o conteúdo em si está o esqueleto do discurso, e a fidedignidade com que foram compiladas as estruturas cognitivas, em plena fruição, do lingüista; é de causar enxaquecas, à primeira vista, todas aquelas anotações, fragmentações, sinalizações e caminhos aleatórios da sua epístemologia da língua, que visa entender quem profere, a despeito da força retórica das palavras que rolam das cordas vocais.

É essa a relevância do documento histórico (aplausos para a Martins Fontes e sua caprichada edição): a expressão oral de Barthes, catalogada em fichas meticulosamente organizadas, de maneira a não "sacralizar" (ou seja, a "neutralizar") tocam mais do que sua genialidade impressa nos dois clássicos acima citados. Aquele que causou urtigas no estilista. E o que decepcionou os românticos patológicos também.

O livro revela o que Barthes procurou ao longo da carreira. O discurso fotografado em movimento. Nu para seu receptor. Aquilo que nos torna menos divinais e mais óbvios do que pensávamos.

Somos, no limite, uma mera equação algébrica. Da qual resulta, dentre outras produções de nossas fraquezas e ambições, o ganha-pão do celebrado estilista.

Para ir além





Daniel Aurelio
São Paulo, 19/12/2003

 

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