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Sexta-feira, 26/12/2003
Desorientação vocacional
Lisandro Gaertner

Sempre me disseram que o importante era você fazer o que mais gosta. Se você gosta do que faz, ou faz o que gosta, vai ter sucesso. Contudo, se todo mundo fizesse o que mais gosta, acredito que a indústria pornô seria enorme, e aliás, é. Mas isso não tem muito haver com o que eu queria dizer, ou melhor, tem.

Vamos pegar o caso da indústria pornô como exemplo. Digamos que alguém se torna um ator pornô por que adora sexo, mas além de gostar do nobre esporte, o prezado indivíduo vai precisar de arcar com um grande preço para fazer o que mais gosta. Além do risco de doenças venéreas e outros biohazzards, a sociedade não vê com muitos bons olhos a profissão de performer sexual. Mas, será que a sociedade não quer que as pessoas façam o que gostam e gostem do que fazem? Não é isso o que nos dizem nas orientações vocacionais da vida?

Pois é, dizem, mas o problema com as orientações vocacionais é esconder um pequeno detalhe. Você deve fazer o que gosta, mas, principalmente, deve pensar em quem você gostaria de ser. Complicado? Explico. Além de escolher uma atividade do seu gosto, é preciso saber quem você será, o que esse trabalho escolhido dirá sobre você. Ao contrário do que dizem por aí, o trabalho não dignifica, ele classifica.

Como assim? Vamos ver, digamos que você "seja" engenheiro. E quem é o engenheiro? Você já pode fazer uma imagem mental do indivíduo. Classe média, proprietário de um carro nem muito velho nem muito novo, vestindo camisa social listrada para dentro da calça jeans; gosta de gizmos, tecnologia e tem um passado nerd, que pode querer encobrir. Quem você é? Ah, eu sou o fulano de tal, engenheiro. Ah, tá, já te classifiquei. Ou seja, não importa se você faz o que mais gosta, mas qual o papel você irá desempenhar no teatro do mundo.

Por outro lado, você pode odiar o que faz, mas gostar do papel social embutido na atividade. Exemplo? Vejo em diversas entrevistas, escritores dizendo que escrever é um parto, um terror, que eles odeiam escrever mas precisam botar para fora "os seus fantasmas pessoais". O que isso quer dizer? Que, em geral, os escritores gostam de "ser escritores", mas não de escrever. Não admira a quantidade de livros ruins que vemos por aí.

É esse tipo de posicionamento na vida que cria os famosos artistas ou os artistas famosos. É esse tipo de gente que chega num dado lugar e diz: " oi, eu sou artista". "Oh", todos se espantam. Aí ele sobe num palco, abaixa as calças e peida em frente à plateia. Presto! O que ele fez virou arte.

Mas será que isso era arte? Não sei, mas passou a ser. Afinal não importa o que você faz, mas quem acham que você é. A partir desse referencial tudo que você faz será medido. A opinião dos outros, enfim, é a medida de todas as coisas.

Logo, ache o que quiser desse texto. Não depende mesmo do que eu escrevi, mas de quem você acha que eu sou. Mas, para facilitar, vou te dar uma dica, não sou engenheiro, ator pornô, e, muito menos, um artista. Graças a Deus.

Ilusão de Amor
M. , vamos chamá-la assim, era uma mulher desencantada. Depois de sofrer por mais de uma década na mão de homens sem coração ou sensibilidade, e passar por anos de terapia que não deram em nada, não via mais como melhorar o seu relacionamento com o sexo oposto. Por isso, optou pelo caminho mais fácil e resolveu montar um blog para discutir suas mazelas.

O blog ficou popular, apareceu até no Blogs of Note, e, através dos comentários recebidos, M. percebeu que não estava sozinha. Como ela, muitas mulheres sofriam com seus parceiros, namorados ou algos parecidos. Respondendo à audiência, seus posts começaram a se tornar mais amargos e destrutivos. Seu contador de acessos fervia. As visitas e comentários de apoio às suas opiniões não paravam de chegar e a estimulavam a destilar cada vez mais veneno. Até que ela conheceu o H..

O H., vamos chamá-lo assim, era um sujeito franzino e calado. Pelo que M. já tinha ouvido, ele também não dava muita sorte com o sexo oposto. Era daquele tipo que não entendia as mulheres e se chateava com isso. M. simpatizou com H. de cara e eles começaram a se aproximar. Um choppinho depois do trabalho, um cineminha no sábado à noite e, pumba, estavam namorando.

No seu blog, M. começou a se declarar apaixonadamente por H.. Suas leitoras, que esperavam os antigos posts de ódio contra o sexo masculino, começaram a abandoná-la. M. não se importou. Ela tinha H. que a entendia e isso era tudo o que bastava. Assim, três meses depois de iniciado o namoro, M. matou o seu blog.

O engraçado foi que, exatamente nessa época, o comportamento de H. começou a mudar. Seus gestos tão sensíveis e educados se tornaram indecisos e, muitas vezes, falhos. A sua capacidade de agradar M. nas menores coisas magicamente sumiu. M. não sabia mais o que fazer. Talvez fosse apenas uma fase. Talvez passasse logo. Talvez... Mas não passou e um dia H., muito sério, a chamou para uma conversa.

- M. , não sei como dizer isso, mas não damos certo juntos.
- Como, H.? Você é o único homem que me entendeu.

H. engoliu em seco.

- O que houve? - M. perguntou.
- M., eu nunca te entendi. Eu apenas lia o seu blog. E agora que você matou ele... não tenho mais como saber o que fazer.

É óbvio, depois dessa, eles se separaram. Levou um certo tempo para M. se recuperar do choque, mas finalmente ela se reergueu. Montou um novo blog, descendo, como de costume, o malho nos homens e até começou a namorar. O novo namorado, como tantos que ela teve, é incompreensivo e pouco sensível, mas tudo bem. Pelo menos, material para o seu novo blog não vai faltar.

Quem?
Sofro de uma terrível síndrome: tenho vergonha de não me lembrar das pessoas. Por isso, vez ou outra, sou obrigado a cumprimentar estranhos na rua sem saber quem eles são.

- E aí? Tudo bem? - a pessoa acena passando.
- Tudo! - digo e apresso o passo.

Hoje, aconteceu mais uma vez. Uma pessoa, passando num carro, buzinou para mim e começou a acenar freneticamente. Como eu estava de bicicleta, tive a sorte de só acenar e passar direto. Passei vergonha, mais uma vez.

O pior, na minha opinião, não é o constrangimento, mas a dúvida. Afinal de contas, quem era essa pessoa? De onde ela me conhece? É como se eu não tivesse controle da minha história de vida. É como se a minha memória só servisse para guardar detalhes bestas de séries de TV e histórias em quadrinhos.

Por isso, se eu passar na rua e te cumprimentar de maneira estranha, não se assuste. Não é culpa sua, nem estou chateado contigo. Simplesmente, estou chocado com a péssima capacidade de seleção da minha memória.

Nota do Editor
Lisandro Gaertner é autor do blog Atematica, onde estes textos foram originalmente publicados.

Lisandro Gaertner
Rio de Janeiro, 26/12/2003

 

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