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Segunda-feira, 5/1/2004
Um brasileiro no Uzbequistão (X)
Arcano9


Não é fácil acreditar que o país é reduto de "extremistas"

Vale de Fergana, 12.06

Durante o dia me veio à cabeça que foi Dia dos Namorados no Brasil. Que estamos na época das Festas Juninas, e lembrei de como era gostoso tomar um quentão no frio, à beira de uma fogueira. Mas isso tudo é a oito horas de fuso horário, milhares e milhares de quilômetros, do outro lado do planeta. Meu passado está a uma distância inalcansável deste mundo chamado Vale de Fergana.

Peguei um ônibus de Samarkand, passei a noite em Tashkent e hoje, às sete da manhã, estava degustando um saco de cerejas docinhas em um movimentado bazar em algum ponto da capital uzbeque. É o local, o único, de onde partem lotações para o Vale, lar de um terço da população de todo o Uzbequistão. Como, em nome de Alá, não existe nenhuma linha de ônibus regular para as cidades do Vale? Cansado após semanas e semanas digladiando com palavras russas espalhadas na cabeça, divaguei longamente em bom português de São Paulo, enquano esperava que o motorista, usando seu dom de lábia, convencesse outros passageiros a embarcar no nosso carro para Margilan, sete mil sums (sete dólares), e quatro horas de volante a oeste.

No caminho, as cerejas e as curvas infinitas de uma estrada que galgava sem parar uma das beiradas do Planalto de Pamir me fizeram muito, muito mal. Não sei quanto subimos, suponho que uns três mil metros, antes do carro começar a ziguezaguear em declive e eu, desesperadamente, me lançar à procurada da palavra "enjoado" e do pedido "pare o carro" no meu dicionário de bolso. Quando finalmente me fiz entender, uns 20 minutos depois, peguei um resto de água numa garrafa que tinha e, encostado no carro, o joguei na cabeça. Quando acordei de novo, estava vendo uma imensa planície fértil, plana, verdejante e fresca. Um lugar lindo. À minha frente, até perder de vista, apenas o céu azul e o pasto verde, meio pálido. À esquerda, montanhas distantes. À direita, parte do maciço que o carro havia acabado de transpor. À esquerda o norte, a fronteira com o Quirguistão. À direita, o sul; o Pamir e meus amigos franceses no Tadjiquistão.

O Vale é tradicionalmente, há séculos e séculos, habitado pelos uzbeques, que disfrutam das águas do Rio Syr Daria e transformaram a região em um centro de produção de verduras, legumes, o inevitável algodão soviético e frutas, muitas frutas. Também por ser o coração pulsante da nação uzbeque, ao contrário de em outras partes do país onde estive, o Vale não sofre de esquizofrenias: há poucos imigrantes, e os locais não falam quase nada de tadjique ou quirguiz ou mesmo russo, apesar dos 70 anos de dominação soviética. As pessoas nas ruas falam uzbeque, o mais puro uzbeque. Também, ao contrário de em outras partes do país, a região sofre os problemas que vem junto com tanta pureza: o islamismo é mais forte. E o governo secular não gosta disso. Ainda na estrada, terminado meu sofrimento, nos deparamos com um grande bloqueio militar. O motorista desce do carro, leva um longo papo com um soldado com seu uniforme. Depois, o motorista me diria que faz a viagem todo dia, e todo dia é a mesma história, ele desce para dar um "oi" a seu amigo soldado. O soldado também pega depois meu passaporte brasileiro, olha, olha de novo e o leva para uma salinha escondida, depois volta em três minutos e diz que está tudo bem.

Em Margilan, sol forte. Desço do carro e me despeço do motorista para, ainda meio enjoado, me sentar na calçada e olhar em volta, em busca de alguma placa que diga "Coca-cola". Estou suando, tenho vontade de tirar a camisa. É quase meio-dia. Mulheres passam por mim rumo ao bazar, logo ao lado. Estão completamente cobertas, com exceção do rosto. Usam vestidos multicoloridos de seda rutilante, purpúras, com detalhes em amarelo, vermelho, branco. Outros têm outras combinações de cores. O sol se reflete na seda e por milissegundos, me ofusca. Um sujeito acha estranho um branquelo europeu como eu estar sentado na calçada. Parece amistoso e me diz que sabe onde vendem Coca-cola. "Vamos para o bazar", diz. Tem cheiro de quem bebeu e não pára um segundo de falar. Eu não entendo o que ele fala, mas não preciso.

Dos bazares do Uzbequistão, talvez o de Margilan, a capital nacional de produção de seda no país, seja um dos menos acostumado a ver forasteiros. Muitas pessoas, especialmente mulheres, passam me olhando com curiosidade. Todas com seus vestidos de seda. Umas, inclusive, cobrem o rosto também com suas sedas ou com a mão, deixando só à mostra os olhos. E são os olhos a parte do corpo que mais importa para elas. Quando me desvencilho de meu amigo bêbado, venço o receio e tento fotografar algumas. No ocidente, as mulheres delineiam as sobrancelhas com lápis, penteiam os cílios, aplicam batom, blush, e ficam lindas. No Vale de Fergana, obviamente, os padrões de beleza são um pouco diferentes. Não vejo quase mulher alguma com batom, nem com blush, nem com as unhas pintadas. Em compensação, elas gastam muito mais com seus lápis para as sobrancelhas. Parece que quanto mais grossas e escuras elas são, mais bonitas suas donas são consideradas. Muitas vão além, e literalmente pintam com lápis uma ponte entre as duas sobrancelhas, na região que fica entre os dois olhos, acima do nariz. Criam a "sobrancelha única" que é tão abominada pelas mulheres ocidentais. Quando percebi isso, finalmente entendi o que levou meu amigo motorista a me perguntar, me trazendo ao Vale, se eu tinha uma esposa. Ele me fez a pergunta ao mesmo tempo em que passava o dedo indicador pela sobrancelha. Ou seja: estava perguntando se eu tinha uma esposa bonita, com bonitas sobrancelhas.

* * *

Uma pilha de casulos brancos. Vapor. O casulo se desfaz. Os fios são tratados com corantes e recolhidos em uma máquina manual, de madeira, que tem uma manivela que enrola tudo. O novelo é enviado às artesãs. Elas gastam seis meses para fazer um tapete, ou duas semanas ou menos para fazer um pano de 1,5 metro de comprimento por 0,5 metro de largura. Ficam em salas quentes, mas parecem felizes. Fazem o que suas mães e avós faziam. Se encontram com suas amigas. Conversam e tomam chá. Eu ainda me recuperava do grosso pão non do almoço quando cheguei à fábrica, onde vi como a famosa seda de Margilan é produzida. Nos tempos soviéticos, os governantes trouxeram para o Uzbequistão suas técnicas perfeitas, cientificamente calculadas, para produzir o máximo de tudo - especialmente algodão. Em troca, o preço foi sacrificar o meio ambiente com produtos químicos, desviando rios e devastando a fauna e a flora. No Vale de Fergana, a produção de seda também foi visada pelo progresso da grande pátria, mas a fábrica Yodgorlik permaneceu para contar a história sobre como era antigamente.

Fui recebido por um jovem que, quando eu disse que vinha do Brasil, abriu um imenso sorriso. Tinha os olhos meio puxados, como um chinês, mas com a pele mais escura. Profundamente enraizado em Margilan, ele falava um inglês melhor que o meu. Disse que recebia turistas freqüentemente e os levava para conhecer a fábrica. "Precisamos conversar", disse ele. "Tenho pensado em formas de ampliar nossos negócios. Você sabe dizer se a seda é popular no Brasil? É bastante usada? Em que tipos de vestidos?", perguntou empolgado, enquanto me levava de sala em sala na fábrica. Lhe respondi que não tinha muito conhecimento do mercado de seda do Brasil, mas que sabia que muitas noivas usavam o tecido em seus vestidos. Ele me respondeu que estava recebendo "muitos pedidos da China, mas que estava difícil exportar para o ocidente", porque ele não tinha "canais". Mas disse que estava otimista, que seu produto era o de melhor qualidade na região, e me levou para uma pequena sala, onde as sedas eram vendidas a peso de dólar. Uma em particular era hipnotizante: um pano longo, desses usados para piquenique, mas trançado com fios de duas cores diferentes, verde e vermelha - os verdes no sentido vertical e os vermelhos, na horizontal. O resultado disso é que, dependendo da direção em que se olha para o pano, ele parece ser ou vermelho ou verde. Uns poucos dolares e o coloquei na minha mochila. Fique pensando sobre os benefícios do capitalismo, a força dos empreendedores, os desafios do comércio internacional e, principalmente, a ironia de ter encontrado o mais ambicioso capitalista de todas as ex-repúblicas soviéticas em uma cidadezinha no local mais distante dos Estados Unidos no Uzbequistão.

Vista a fábrica, não havia mais nada para fazer na pequena Margilan. Percebendo que ninguém falava russo, pedi a meu novo amigo capitalista que me ajudasse a encontrar transporte para Namangan. Uma hora depois, eu havia chegado a uma grande cidade e, pela primeira vez na minha viagem, estava visitando um local por puro interesse jornalístico.

* * *

Em fevereiro de 1998, uma série de bombas explodiu na capital do Uzbequistão. O governo do país, que havia adotado em sua constituição a separação entre o Estado e a religião, culpou um grupo de extremistas islâmicos pelos antentados, o Hezb-i-Tahrir. O governo já vinha desestimulando progressivamente, desde 1991, as pessoas a andar nas ruas com trajes muçulmanos, ou a falarem do Islã publicamente. Mas os atentados foram a gota d'água para ampliar de vez a repressão, especialmente no local onde o grupo e a maior parte dos extremistas islâmicos do Uzbequistão, teriam suas bases: o Vale. A presença militar foi reforçada e muitas pessoas foram presas simplesmente porque eram suspeitas de ser ativistas islâmicos. Esse hábito do presidente Islam Karimov provocou grande revolta da população e manifestações de parentes dos presos, violentamente reprimidas. A Anistia Internacional, todos os anos, repete a ladainha de que as prisões do Uzbequistão são um paraíso para os torturadores. O país, em si, está calmo. Mas quanto tempo isso vai durar? O que vai acontecer quando o presidente Karimov morrer?

Namangan é (ou era) o lar de Juma Namangani, um ativista considerado pelo governo uzbeque um dos líderes do Hezb-i-Tahrir e que teria morrido em 2001, na cidade de Mazar-i-Sharif, no Afeganistão. Embora tenha se dito que Namangani tenha morrido, ninguém sabe ao certo se isso é verdade, e provavelmente nunca saberá. E se o governo precisava de uma desculpa para manter a rédea curta para os ativistas em Namangan, aí está ela. Juma pode estar planejando, neste momento, seus novos atentados.

No centro da cidade, em uma grande área verde abriga diversas faculdades, me sentei com uns estudantes de direito para perguntar a respeito da cidade. Eu não tinha a mínima idéia do que fazer por lá, meu guia de turismo não trazia referências e eu não tinham nem sequer um mapa. Perguntei se eles sabiam onde podia comprar um mapa, e eles disseram que não sabiam. Puxei papo perguntando sobre obras arquitetônicas e mesquitas de Namangan. Me falaram de uma mesquita no centro, e perguntei a eles se iam lá com freqüência. Um deles respondeu que não, e eu perguntei por quê. Ele não soube responder. Perguntei se muitos jovens lá eram como ele: se vestiam com roupas ocidentais, não usavam o chapéu uzbeque e não iam à mesquita. Fez que sim com a cabeça. Era claríssimo que ele não queria falar sobre isso. Nem uma palavra mais.

No caminho para a mesquita, ainda na área arbolizada, vi dezenas, centenas de jovens na porta de duas ou três faculdades. Praticamente como a Universidade de São Paulo. Alguns com livros e cadernos na mão, os homens olhando para as mulheres, as mulheres ajeitando os vestidos. A uma quadra de lá, vi um cartaz no que aparentava ser uma janela de um restaurante abandonado. Era um cartaz velho, com o preto das letras e fotos desaparecendo. As fotos eram de uns 20 cidadãos acusados de "atividades extremistas". Senti uma sensação estranha. Umas crianças que estavam na rua, brincando meio longe de mim, ficaram quietas e se aproximaram um pouco. Olhei para elas e elas me fitavam, sérias. Certamente, ninguém por lá fazia o que eu estava fazendo. Sai andando, sem olhar para trás. A impressão de que, no centro de Namangan, ninguém quer ver que há problemas (e ser visto como um problema) ficou clara ao me aproximar da mesquita. Os fiéis que vi chegarem entravam rapidamente no salão para suas orações. Fui entrando para ver o pátio perto da construção e, surpresa, ninguém quis puxar papo comigo. Ninguém teve curiosidade e, espontaneamente, foi me perguntar de onde eu vinha. Me olhavam de longe.

Senti uma certa tristeza, o que foi uma ironia. Por semanas, me cansei de ser abordado pelas pessoas e ter que explicar o que um brasileiro estava fazendo tão distante de seu país. Agora, estava sentindo falta do calor e do carinho daquele povo. Fui para meu hotel.

Amanhã, volto a Tashkent e embarco de volta a Londres. Ao anoitecer, olhei pela janela e vi uma quadra poliesportiva. Jovens estavam jogando futebol. Desci e fui assisti-los mais de perto. Eles me ignoravam enquanto lutavam pela bola, se lançavam em carrinhos, cobravam seus escanteios e davam risadas. Jogavam muito mal todos aqueles jovens, alguns de shorts, outros sem camiseta. Era como meus amigos e eu jogávamos, no Brasil. De repente, senti que os problemas mudam, os lugares mudam, mas meus olhos continuam os mesmos. E que o que eu vi foi totalmente parcial. Uma outra pessoa teria prestado atenção em outras coisas. Mas eu prestei atenção no futebol ruim, na falta ou no excesso de sorrisos e curiosidade, na arquitetura diferente, na herança do comunismo, nas sobrancelhas grossas e nos chapéus pretos. Coisas que, no meu país, não existem. Que só um brasileiro no Uzbequistão poderia ver e contar.

E o que eu contei não foi metade do que eu vi.

Arcano9
Miami, 5/1/2004

 

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