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Terça-feira, 13/1/2004 John Updike não se cala Fabio Silvestre Cardoso No prefácio do livro A Fogueira das Vaidades, de Tom Wolfe, o saudoso jornalista e crítico cultural Paulo Francis (1930-1997) escreveu "Ninguém escreve melhor do que Flaubert (John Updike chega perto)". Esta introdução foi feita em 1988, mas Updike segue como um dos mais proeminentes escritores de nosso tempo. Já publicou romances e coletâneas de contos, além de permanecer como colaborador da "nata" do jornalismo cultural norte-americano, incluindo as famosas The New Yorker e The New York Review of Books. No início da década de 90, a obra deste norte-americano da Pensilvânia ganhou certa importância por estas plagas, principalmente pela celebrada "Teatrologia do Coelho", como ficou conhecida a seqüência Coelho corre; Coelho cresce; Coelho cai; e Coelho em crise. Trata-se de uma crônica atenta da família de Rabbit Angstrom, que, de certa forma, representa um microcosmo da sociedade norte-americana. No entanto, até o lançamento de Coelho se cala e outras histórias (Companhia das Letras, 367 págs.), os leitores tinham a impressão de que tanto os temas prediletos de Updike - casamentos, traição, o cotidiano das pequenas cidades - como a saga do Coelho haviam se esgotado. Não foi o que aconteceu. O volume reúne 13 contos. Todos eles devidamente bem elaborados, sempre com a ironia fina tão característica dos grandes escritores americanos, como F. Scott Fitzgerald e J.D. Salinger. Exemplo disso é o primeiro conto, "As mulheres que escaparam". Nele, Updike amarra a descrição dos detalhes psicológicos às mudanças sociais do período: "Em Nashua, enquanto os anos 70 morriam à míngua com a inflação e o mal-estar do governo Jimmy Carter, fui perdendo de vista as idas e vindas em Pierce Junction". Por vezes, tende-se a acreditar que esse elemento é apenas um adendo à história, podendo até ser suprimido; contudo, trata-se de parte essencial do texto de Updike. Ainda no primeiro conto, as personagens se caracterizam por viver, intensamente, as aparências. O autor, porém, consegue dissecar o que há por trás dessa dissimulação. No segundo conto, "A hora do almoço", um homem revê seus conhecidos de colégio numa desses encontros de turma. Há algo de melancólico nessas reuniões, que sugerem muitas lembranças a David, o protagonista. Tanto é assim que, em dado momento, ele se surpreende ao olhar para trás, reparando a generosidade dos pais e seu próprio egoísmo. Era, segundo ele mesmo confessa, um predador adolescente, ávido por hambúrgueres, aceitação e gasolina. Destaque ainda para a descrição da personagem Julie, cuja feição se confunde com o seu jeito circunspeto e soberbo. Novamente, são os detalhes que compõem o texto. Dessa maneira, é interessante descobrir a forma como Updike constrói as histórias. Em "Garota de Nova York", a traição volta a ser o tema central. Ao longo do livro, aliás, o leitor chega a se perguntar se é a traição o destino natural dos casamentos. Neste "episódio", o envolvimento Stan e Jane choca pelo fato de um ser completamente diferente do outro. Enquanto ele tem família numa cidade do interior e trabalha como vendedor de molduras, ela é a nova-iorquina independente que sabe o que quer: "Tome aí meu endereço - é pertinho daqui. Não seja tímido, Stan. Vai ser divertido". Tal atitude contrastava com o sentimento de culpa do parceiro: "[...] Eu e o motorista normalmente conversávamos nessas minhas voltas ao hotel; ele estava satisfeito por conseguir um passageiro, e eu animado pela sensação de triunfo sexual e de fuga." A história de um professor universitário que herda uma fazenda repleta de gatos aponta os "choques" provocados pela distância e pela diferença entre pessoas tão próximas, como mãe e filho. Nesse conto, a memória tem um papel fundamental: cicatriza algumas frustrações do filho ingrato ao mesmo tempo em que reaviva sua sensibilidade até então petrificada. Mesmo nos textos pequenos, como "A evolução de Oliver", o autor surpreende os leitores. Desta feita, o protagonista, um rapaz ingênuo e cheio de problemas, torna-se a personagem mais forte do livro em relação aos demais contos, conforme indica o próprio autor: "Comparado com a mulher, Oliver era equilibrado e seguro, e tornou-se um modelo para ela. Foi essa a chave. O que esperamos dos outros, eles dão um jeito de nos dar". Post Scriptum "O Coelho se cala" é o epílogo, ou posfácio, da saga da família Angstrom. Agora, Harry Angstrom, personagem principal dos outros livros, está morto. No entanto, como se vê no conto, algumas de suas histórias não foram enterradas. E é com surpresa, e também repulsa, que a esposa de Harry descobre a filha bastarda de 40 de seu ex-marido, fruto de um "affair" com uma prostituta, conforme relatado no romance de Coelho corre. Assim, a narrativa descreve com aguda perspicácia os momentos constrangedores do encontro entre Janice, a ex-mulher, e Annabele, a filha. "Desculpe eu vir com uma história que já estava morta e enterrada", diz a segunda, tentando justificar suas razões para ter quebrado a espiral de silêncio que se formara acerca da vida do Coelho. Para além do desfecho deste ciclo romanesco, Updike articula as reações das personagens com os costumes, e temores, da vida cotidiana dos norte-americanos ao longo da década de 90. Assim, se nas demais histórias o tom das narrativas contava com um caráter histórico, quase proustiano, Coelho se cala discute, em profundidade, o modus operandi de uma sociedade em constante transformação (mais do que nunca na última década). Nesse sentido, é notável perceber como uma obra de ficção consegue revelar de que maneira os padrões e paradigmas dessa sociedade foram colocados em xeque pela hipocrisia e pelo auto-engano. Para ir além Fabio Silvestre Cardoso |
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