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Quarta-feira, 27/8/1975 Apresentação autobiográfica muito solene Ana Elisa Ribeiro Minha mãe engravidou sem querer, mas já era casada com meu pai. Ambos recém-formados. Ela, assistente social. Ele, médico. Aquela casa com uns ares de consultório, os vizinhos que vinham pedir atestado, as crianças que chegavam de urgência. Meu pai puto porque só apareciam quando os médicos oficiais estavam de férias na praia. Minhas primeiras lições de ética foram ali, escondida atrás da porta do consultório meio improvisado. Os vizinhos pedindo atestado pra não trabalhar, pra não fazer aula de Educação Física. E meu pai, médico sério, rasgando o verbo e dizendo que isso não era com ele, picaretagem dá problema no CRM e ele não mente, jamais. E o vizinho saía meio agressivo, achando que meu pai é que estava errado. Nasci na madrugada do dia 27 de agosto de 1975. Não sei se era quente ou frio. Provavelmente uma noite dessas temperadas. Fui morar no mesmo bairro em que moram meus avós e em que moro até hoje. E venho repetindo a história familiar, especialmente a das mulheres, faz tempo. Meu nome é Ana Elisa porque a sorte decidiu assim. Escapei do azar de me chamar Gilca e da sina de ter nome estrangeiro. Ana Elisa saiu no sorteio, depois que meus pais tiraram um papelzinho de uma bacia cheia de nomes piores. Tenho mais três irmãos, todos mais novos. Fui severa a vida inteira com eles e acho que serei com meu filho. Escuto histórias em discos de vinil colorido desde bebê, quando minha mãe investia na inteligência verbal dos filhos. A curiosidade pela escrita me veio desde muito cedo, quando ainda inventava garranchos e fingia que lia imensos épicos improvisados pros titios e avós, ainda babões com a primeira sobrinha e neta. Ganhei muitas coleções de livros infantis, clássicos da literatura oral do mundo inteiro, discos com histórias dramatizadas e via bons programas de tevê. A Xuxa ainda não havia invadido a telinha e a Simony ainda parecia magrinha e frágil. Dos livros infantis, passei à coleção Vaga-lume. Mais tarde, os clássicos canônicos da estante de minha avó e os livros infanto-juvenis da tia Silvinha. Apesar do colégio, continuei lendo bravamente o que queria e escrevendo páginas e páginas de um diário que um dia minha mãe violou. A escola me mandava ler. Eu lia. Aprendi cedo a simular boas redações de colégio e a me virar com a linguagem que eu queria sob o teto mais livre da minha casa, onde ninguém vinha me dar notas. Passei a adolescência inspirada por Émile Zola. Impressionante. E minha avó tinha qualquer preferência por russos e franceses, o que não me fez mal. Quando pude, passei a comprar meus livros e a cultivar minha pequena biblioteca particular. Queria o conforto de rabiscar, tecer comentários, ler por quanto tempo eu quisesse sem precisar de carimbo de renovação. Sou gratíssima às bibliotecas públicas de minha cidade, que me deram muitas chances, sendo uma a mais importante: a de conhecer poesia. Aos 17 anos, já achava que o que eu arriscava escrever era poesia. E jamais m'esquecerei do dia em que li Ana Cristina César e Paulo Leminski pela primeira vez. Foi isso que dividiu minhas águas. A despeito dos não-leitores de literatura da minha casa, fui galgando a literatura com paixão. E voltei-me para ela até ganhar um concurso do maior jornal dos mineiros, O Estado de Minas. Aos 19 anos, decidi publicar meu primeiro livro. Bem-acompanhada pela amiga Luciana Tonelli, entrei na Coleção Poesia Orbital, que comemorava com 70 poetas os 100 anos de Belo Horizonte. E então conheci Fabrício Marques e Marcelo Dolabela. Entrei para a Faculdade de Letras, a despeito dos comentários maldosos que me faziam os bem-sucedidos palpiteiros: faça Direito, faça Medicina. Mas não me abatiam com seus hábitos pouco criativos. Fiz um puta curso de Letras. Tive pavor das aulas de Literatura da faculdade. Até hoje sinto certo desconforto quando vejo os nomes das disciplinas: O conto, teoria e prática. Ahá. Mas fiz mestrado em Lingüística. Tornei-me professora e editora. Dou aulas na PUC e na UFMG. Edito livros jurídicos. E às vezes, diante das diferenças de salário e de modus vivendi, até me arrependo de não ter feito Direito. Mas isso ainda não me convence. E os tailleurs bem-arranjadinhos não me movem. Detesto maquiagem e não gosto de vestidos. Tenho dois coturnos de estimação. Apesar do que parece, não sou e nem nunca fui lésbica. Ando, neste momento, às voltas com uma gravidez que evolui célere para o quarto mês. E o que eu achava improvável, aconteceu: meu "marido" é o escritor fluminense Jorge Rocha, autor desta obra-prima embrionária junto comigo. E não foram exatamente as mãos que usamos para esta produção. Aos 26 anos, publiquei meu segundo livro, pela editora Ciência do Acidente, junto dum catálogo de feras. Perversa foi meu livro mais cuidado e andou me facilitando bastante a vida. Tenho um novo livro na gaveta, prontinho, mas o parto vai ficar caro, então aguardo por contingência mais adequada para lançá-lo. Aos 28 anos, tenho uns planos para 2004-05, além dos de trocar fraldas. Continuo lendo muito e trabalhando muitas horas por dia. Escrevo muito porque me parece algo inerente à minha vida. Julio Daio chegou até mim nem sei por quê. Acho que porque tenho um blog na Internet, a Estante de Livros. E desde então nos tornamos amigos e ele me chamou pra escrever no Digestivo. Já colaborei num monte de jornais impressos e em revistas eletrônicas, mas o Digestivo é o ciberlugar em que mais tenho me exibido. Nem mesmo meu blog vê tanto o ar da minha graça. Também há textos meus na Fraude e na Agência Carta Maior. Alimento o sonho de que muita gente goste do que eu escrevo. Mas não deixo de dormir por isso. Vou fazendo o que dá e morro de medo de São Paulo espalhar seus tentáculos e engolir o país. Belo Horizonte tem produção cultural rica, mas não tem grana e nem bons secretários de cultura. Mas os escritores e bailarinos e artistas plásticos e músicos são tão bons quanto em qualquer outro lugar. Advirto o leitor que sou muito insolente por escrito, mas pessoalmente sou uma tímida e quieta mineira de traços mediterrâneos. E sou alérgica a dipirona. Obs.: A foto aí em cima foi montada pelo Fred Muzzi. Nunca estive em Nova York e odeio viajar. Ana Elisa Ribeiro |
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