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Terça-feira, 20/1/2004
Intelectualidade e democracia
Luis Eduardo Matta

Se existe uma coisa que me espanta profundamente no Brasil, é a facilidade com que uma expressiva parcela da nossa intelectualidade enche a boca para defender os valores democráticos ao mesmo tempo em que parece se recusar a exercê-los na prática. Não que isso seja uma novidade, muito pelo contrário. Trata-se de uma herança de um tempo em que o embate ideológico se dava num mundo bipolar sem espaço para a neutralidade; onde reinava uma divisão nítida, concreta entre direita e esquerda, capital e trabalho, conservadores e progressistas, burgueses e socialistas, defensores do imperialismo americano e do totalitarismo soviético. Foram anos movidos a esperança, em que o planeta vivia um momento delicado de transformações acentuadas e, conseqüentemente, conflitos decorrentes desse processo. O debate político não era mera retórica. Tomar partido era praticamente uma obrigação para os que exerciam publicamente o ato de pensar. Não existia meio termo e nem poderia. Aquele que optasse pela conciliação corria o risco de ficar marcado como um potencial inimigo por ambos os lados. Uma remota suspeita de traição poderia ser punida com rigores que fariam corar os mais devotados servidores do inferno.

Veio o ano de 1989, o muro de Berlim e a cortina de ferro foram abaixo, o regime socialista europeu mostrou-se um embuste, a repressão política na América Latina minguou e a economia de mercado rompeu a década de 90 ostentando uma falsa pátina de triunfo que deixava entrever todas as suas falhas, feridas e contradições. A reviravolta decorrente do fim da União Soviética e do delírio socialista fez nascer um mundo diferente, infinitamente mais complexo e nebuloso do que aquele em que boa parte da classe pensante em atividade se formou. No entanto, o debate ideológico continuou misteriosamente circunscrito ao modelo antigo, amparado na clássica divisão simplista entre direita e esquerda. Ainda hoje assistimos estarrecidos a senhores e senhoras de aparência séria, retórica afiada, olhares compenetrados e uma reputação construída nesse remoto passado bipolar, entregando-se apaixonados a discursos absurdamente anacrônicos, que bem poderiam ter sido redigidos em plena doutrina Eisenhower, não importa se por burocratas da CIA ou por revolucionários cubanos. E a impressão que passam, pelo menos para observadores isentos como este humilde colunista que vos escreve, é a de que, com raras exceções, a intelectualidade brasileira, pelo menos no que tange à política, não se modernizou, não importando a faixa etária dos seus membros. E permanece tão ridiculamente sectária e inflamada quanto no passado, como se o velho inimigo estivesse à espreita precisando ser derrotado a qualquer custo, numa luta desesperada de vida ou morte.

O que fazer diante de um quadro lastimável desses? Às margens do Rio Piedra, sentar e chorar? Aposentar à força a parte fossilizada da intelligentzia nacional e estimular a aparição de uma outra, sintonizada com as demandas da nossa época e sem os ranços ideológicos de um passado de lutas que pouco tem a nos dizer hoje? Ou, estimular o debate livre? É claro que as almas devotadas ao raciocínio ficarão com essa terceira hipótese, mas, se forem perspicazes, logo se darão conta de que se trata da de mais difícil realização, por uma razão simples: o intelectual brasileiro odeia a proximidade com seus adversários e abomina o confronto de idéias.

Voltemos, então, ao início do presente artigo, quando mencionei a falta de apego da nossa intelectualidade ao exercício dos princípios democráticos. O que eu quis dizer com isso? Ora, a base de qualquer democracia é o trânsito irrestrito de idéias. Numa nação democrática, a palavra é inteiramente liberta. Por mais abominável, por mais hedionda e execrável que seja a sua opinião, você tem todo o direito de externá-la sem o risco de sofrer qualquer espécie de punição em resposta. E, quando estas opiniões são confrontadas e debatidas à exaustão pela minoria - sim, porque os pensadores com "p" maiúsculo são e sempre foram uma minoria em qualquer sociedade - com mais bagagem cultural para referendá-las e embasá-las, instala-se um saudável ambiente de liberdade, no qual o bom-senso tem grandes chances de sair vitorioso. O fato é que esse debate no Brasil nunca aconteceu; não, ao menos, nos moldes necessários para um país que tanto necessita encontrar um rumo. Talvez por este nunca haver sido o real objetivo de uma classe intelectual majoritariamente oportunista, cuja preocupação sempre foi muito mais a de se projetar, auferir fama e arregimentar adeptos e admiradores, do que a de construir um modelo de pensamento que de fato se dispusesse a refletir honestamente sobre a nossa triste realidade, propondo uma maneira de reformá-la, sem resvalar para delírios revolucionários, soluções milagrosas importadas, populismo barato e, em alguns setores, para uma irresistível atração por um conservadorismo oligárquico quase feudal.

Outro dia me flagrei imaginando como seria bom se existisse no Brasil uma publicação de alto nível que agregasse as melhores cabeças do país, adeptas das mais diferentes formas de pensamento, gente de direita, esquerda, religiosa, laica, filósofos e analistas políticos de todas as tendências, economistas liberais e ortodoxos, partidários dos movimentos civis de afirmação racial, sexual, social e - por que não? - seus mais fervorosos opositores. Essa publicação, que poderia ser um jornal ou revista, teria um comitê editorial neutro, essencialmente apartidário, que só interviria em última instância e, mesmo assim, atuando como um árbitro rigoroso, isento e justo. Sua função seria unicamente a de oferecer-se como suporte para um debate totalmente livre de qualquer espécie de censura. É duro admitir isso, mas o projeto dessa revista é irrealizável hoje, por uma série de razões, desde as mais óbvias - alcançaria um público muito restrito, teria poucos anunciantes por causa da pequena tiragem e do teor polêmico de muitos dos seus artigos; não teria dinheiro para pagar os articulistas mais reputados que, com raras exceções, não escreveriam de graça, etc. - até a mais inconfessável: poucos são os autoproclamados pensadores brasileiros que possuem estofo suficiente para enfrentar uma verdadeira arena de debates, onde os chavões ideológicos não têm vez e onde a ausência do manto protetor de uma linha editorial amiga e engajada, põe à prova qualquer teoria que não esteja milimetricamente endossada por uma sólida argumentação baseada numa profunda formação cultural, na ética e, sobretudo, no bom-senso.

Quantas vezes eu já me vi envolvido em discussões em que, sem querer, levava um inflamado interlocutor à beira de um ataque apoplético tentando ingenuamente mostrar que o antigo conceito de direita e esquerda não fazia mais sentido nos dias de hoje e precisava ser reavaliado com urgência? Que essa divisão não se havia extinguido como alguns setores mais conservadores gostam de apregoar, muito pelo contrário: que houve uma espécie de fragmentação dos velhos núcleos ideológicos, até então sólidos e indivisíveis, acompanhada de um remanejamento de idéias obedecendo às mudanças vertiginosas pelas quais o mundo vem passando. Ao querer provar que o problema essencial da desigualdade social persistia, mas que os instrumentos para combatê-la deveriam ser diversificados, sem necessariamente implicar num confronto direto com o status quo vigente, lembro-me de ter recebido como resposta uma enxurrada de bravatas temperadas com insultos pessoais os mais diversos que iam de fascista a comunista, passando por reacionário, estúpido, subversivo ridículo e louco. Imaginem, agora, como essa discussão seria diferente e mais elevada, caso acontecesse num veículo público de comunicação, com experts no assunto expondo seus pontos de vista para um público interessado em assimilá-los; uma discussão centrada nas idéias, com argumentos factíveis, sem populismo, ataques pessoais, patrulhamentos, frases feitas e intimidações.

É o debate constante e irrestrito de idéias associado à livre expressão que constitui, junto ao direito ao voto, o pilar central de uma democracia. Infelizmente, a nossa sociedade não atingiu ainda um nível razoável de maturidade e discernimento para exercer tais prerrogativas civilizadamente. A elite pensante, que seria, em tese, a maior interessada na consolidação de um modelo democrático é a primeira a lhe fazer vista grossa, preferindo encastelar-se nas próprias convicções, boicotando, assim, qualquer possibilidade de aproximação com o pensamento dito "inimigo". Isso vale para os partidários de todas as ideologias, mas é certo que quanto mais baixo o cabedal cultural e mais visível a verborragia oportunista, menor é a disposição para o diálogo. Afinal, para que dialogar, quando é muito mais cômodo e seguro simplesmente "jogar para a platéia", repetindo discursos e teses requentados que uma rala massa crítica receberá sem sobressaltos? Para que criar uma revista de debates multifacetada, se já existem algumas com tendências editoriais definidas, onde se escreve para os "iguais" e onde as possibilidades de ser contestado seriamente são praticamente inexistentes?

Devemos sempre ter em conta que democracia é muito mais do que simplesmente votar. Ser democrata é, antes de tudo, tolerar e considerar a opinião dos que pensam diferente, permitir que ela seja enunciada para quem quiser ouvir e receber, de volta, o mesmo tratamento. Ser democrata é admitir que não existe um caminho único para nada, que a realidade é múltipla, que existem milhões de pessoas na Terra pensando cada qual de uma forma e é essa pluralidade que torna a existência rica, a sociedade viável e o mundo atraente e estimulante. Ser democrata é não reagir raivosamente quando uma voz contrária se levanta para contestá-lo, não almejar o consenso acima de tudo, apreciar o debate, respeitá-lo, incrementá-lo e procurar refletir sobre a sociedade, de uma maneira que atenda a todos, sem que os interesses de um único grupo prevaleça. Ser democrata é, sobretudo, estar permanentemente apto a mudar de opinião e não se envergonhar disso, pois seu compromisso maior é com a verdade.

Mas, por tudo o que tenho visto, a intelligentzia brasileira infelizmente, está longe de se aperceber disso. No fundo, ela ainda acredita que a democracia, na prática, é apenas uma mesura elegante, sem qualquer função no mundo insano dos slogans politizados. E, enquanto esse quadro não muda, a política nacional segue em sua desoladora e eterna agonia.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 20/1/2004

 

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