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Sexta-feira, 23/1/2004
Um monstro que ri
Eduardo Carvalho

São Paulo

São Paulo - como um gigante horrível - é enorme e disforme. E está com a pele destruída por buracos e verrugas. Por dentro, só pode estar podre: exalando, com barulho e força, um incômodo ar para se respirar. Pode-se observá-la por todos os ângulos e distâncias: não há miopia que amenize seus defeitos. Nem plástica, como pretendem certos prefeitos(as). São Paulo nasceu, como alguns bebês, bonita e simpática; mas não se cuidou bem: e hoje seus defeitos são provavelmente definitivos. Assim como o fato de eu ter nascido aqui. Aconteceu - e certas coisas não se corrigem mais.

Se aproveitam, na medida do possível. E acho que, como pude, conheci e desfrutei São Paulo, apesar dos pesares, que são muitos. Até hoje, foi em São Paulo que passei a maior parte da minha vida, com intervalos periódicos e pequenos, de um a seis meses. É impossível, ainda assim, conhecer São Paulo completamente. Eu não conheço. Certos aspectos - a violência e o sotaque, por exemplo - são constantes, passando, com mais ou menos intensidade, por todos os bairros. Mas só. A Móoca é totalmente diferente do Morumbi - que, por sua vez, não se parece com os Jardins. Não escrevo, portanto, sobre a cidade de São Paulo em geral, mas sobre uma em particular: a minha cidade, em que nasci e cresci, e que ainda hoje frequento.

Por onde passei, para que se esclareça o que conheço, e de onde falo, e falarei: nasci morando nos Jardins, na Rua Bela Cintra; me mudei, aos 6 anos, para a Rua Sampaio Vidal - que a prefeita Marta Suplicy pretende destruir -, no Jardim Paulistano; fui depois, aos 12, para Alto de Pinheiros, o bairro mais agradável que conheço; voltei, aos 19, para os Jardins; e agora, aos 23, vim morar em Higienópolis, quase dentro do shopping homônimo. Freqüentei sempre o Morumbi, por causa do clube e da academia em que treinava tênis. E, da infância à adolescência, atravessei anos na Vila Nova Conceição, onde está a escola em que estudei, até preferir outra, aos 15 anos, em plena Av. Paulista. Visitei médicos e dentistas por aí: Itaim, Vila Olímpia, Moema. Com três irmãs para dividir um carro e um motorista, com atividades freqüentes e distantes, passei horas travado no trânsito paulistano: dormindo, com o banco deitado, ou ouvindo incríveis casos da periferia paulistana, de um dos mais de 15 motocas que trabalharam em casa.

A vida em São Paulo, separada em bairros, é provinciana, como em qualquer outra grande cidade. Só pode ser assim. O cidadão se defende da multidão e da imensidão paulistana definindo o limite territorial de suas atividades, para não inviabilizar sua rotina diária. Não foi diferente comigo - mas acho que, relativamente, até que me locomovi muito. O primeiro inconveniente de São Paulo - segundo o qual nosso roteiro se ajusta - é o trânsito. Só que ele não mata. E, mesmo que exija uma paciência desumana dos motoristas, o desgaste provocado pelo trânsito é incomparável com a violência. São Paulo, nesse sentido, está - para se dizer o mínimo - inabitável. É um absurdo que seja necessário controlarmos nossos hábitos porque um viciado pode nos surpreender numa esquina qualquer, e inexplicavelmente nos enterrar uma bala nos miolos. Isso é terror. Que não apenas fere e mata, mas impõe uma carga pesadíssima de pressão psicológica em inocentes, que - por precaução justificável, e não neurose gratuita - são obrigados a tomar os cuidados necessários. E essas necessidades atrasam nossa vida.

Não acho que São Paulo é, como querem alguns de seus habitantes, uma cidade culta e cosmopolita. Porque - não adianta forçar - seus habitantes não são. O que é compreensível: não existe cidade assim em país de terceiro mundo. São Paulo, no máximo, tenta ser, o que às vezes lhe faz cair no ridículo, adotando e exagerando modas atrasadas, da arquitetura ao vestuário, sem conseguir esconder seu vergonhoso contraste na renda. A civilização, se houvesse, não se esconderia entre muros tão altos. Disse alguém - Bernard Shaw, se não me engano -, com toda a razão: grandes homens não querem apenas viver em casas bonitas, mas em cidades bonitas também. A feiúra de São Paulo é eloqüente.

Encaro a vida aqui, então, como uma aventura, como se estivesse em Luanda ou Bangkok. O dia-a-dia pode parecer, de vez em quando, entediante, mas normalmente não é, se consideramos cenas e situações freqüentes em São Paulo - e apenas aqui, senão em poucos outros lugares do mundo. O problema - se se pode chamar assim - é que nos acostumamos. E aceitamos o exótico e emocionante como se fosse comum. Não é.

Afora, porém, a aberração estética e a violência assustadora, ainda é possível se divertir em São Paulo - já que estamos aqui. A cidade, de um lado, oferece opções baratas ou gratuitas, pouco aproveitadas por quem se acostumou a pagar por entretenimento. E, de outro, uma variedade de programas caros, para quem prefere se afastar da confusão - e se fechar num mundo particular, às vezes bonito e confortável.

A lista dos primeiros passeios está disponível periodicamente em revistas semanais, sob o invariável título: "Como se divertir muito gastando pouco": Parque do Ibirapuera, USP, Pinacoteca e Parque da Luz, Masp e Mam, feirinhas do Masp e da Benedito Calixto, apreciação de esculturas públicas, caminhada por bairros supostamente agradáveis, etc. E, na segunda lista, estão sempre lá: os mesmos restaurantes, shoppings para compras, shows reservados, etc. Listas assim são de uma falta de criatividade irritante. Mesmo quando se pretendem alternativas, e recomendam pizzarias escondidas e bares anônimos. Mas mesmo assim acho que é mais proveitoso citar o que compensa em São Paulo do que o que prefiro dispensar. Porque eu, pelo menos, dispensaria quase tudo - mas não certas preciosidades, impossíveis ou difíceis em outras cidades, de Londres a Dar-es-Salaam.

Como o hábito que tenho de, sozinho no carro, abrir a janela, e ouvir o ruído dos carros como se ouvisse uma orquestra perfeita, imaginando que a poluição exalada é resultado do cansativo exercício dos músicos - correspondente ao suor de um baixista concentrado. De fundo, Bach é a melhor opção, acompanhando, com suas paixões matemáticas, o ritmo mecânico dos motores. Aprecio essa situação tanto no trânsito atrapalhado da Av. Brasil como num fim-de-semana tranqüilo, na Marginal Pinheiros. O carro pode eventualmente balançar com buracos, e o CD voltar, mas faz parte, como uma buzina inesperada: tudo, nesse momento, é justificável, e qualquer alteração súbita é sempre o improviso de um músico atrevido. Os aviões, nesse espetáculo, completam o cenário, com sua imagem em movimento no céu - que, apesar de atrasado, também contribui sonoramente para essa composição musical.

Os aviões, aliás: é uma emoção renovada pousar em Congonhas, ou assistir a pousos, de jatos passando a 50 metros de edifícios enormes. Parece que vai bater. Mas não bate, normalmente, e a aflição passageira transforma-se, depois da aterrissagem, num delicioso alívio. O aeroporto, hoje quase no centro da cidade, é único, com suas colunas retrôs, e serve de ponto casual para encontro aos freqüentadores da ponte-aérea. É um programa gratuito, do chão, ou lhe custaria uma passagem de volta - de onde estiver no Brasil para São Paulo, reservando a janelinha. Mais legal do que uma tarde no Play Center.

Não se encontra, suspeito, nem em Goiás, um Rancho Goiano tão goiano - no ambiente e na comida - como o da Rua Rocha, quase na esquina com a Avenida Nove de Julho. É um achado: uma mistura de freqüentadores paulistanos e goianos, tragando pinga e cigarros da região, e ouvindo, claro, música caipira legítima e ao vivo. Para quem, como eu, gosta de música sertaneja, é uma maravilha. Sem contar os bares adjacentes, que reúnem um público, à sua maneira, encantador - como porteiros no tempo livre jogando caça-níquel e prostitutas baratas em horário de folga, se é que isso existe.

Tenho uma relação inconstante, de amor e ódio, com o Aeroporto Internacional de Guarulhos e com a Rodovia dos Bandeirantes, dependendo do meu rumo - se saindo ou chegando de São Paulo. Quando peguei o carro sozinho, pela primeira vez, para Barretos, numa sexta-feira ensolarada, foi como se deixasse, ao mesmo tempo, uma cidade e uma idade que me prendiam a responsabilidades que eu não queria mais. Em São Paulo, de carro, estamos presos numa bolha metálica, o que é uma sensação muito desagradável. Mas isso, na estrada, num dia bonito, sozinho, desaparece, para mim. Em Cumbica, se saindo, nunca me senti mal, ao contrário: não compreendo a tensão ou a tristeza de certos viajantes solitários. Os instantes que antecedem um destino inédito ou remoto sempre são entusiasmantes - e foi nesses pontos, na Bandeirantes e em Cumbica, que na maioria das vezes os aproveitei. Claro que, até hoje, sempre voltei dos meus destinos, e confesso: com uma certa melancolia, quando o trânsito aperta na rodovia ou o céu, do avião, se revela sujo e escuro.

Repito: se comparada a centros civilizados, São Paulo é pobre e feia, mas não é com Paris ou Roma - que estão, aliás, em decadência - que ela deve ser comparada. Nem com Varsóvia ou Buenos Aires, capitais que com facilidade poderiam estar num país desenvolvido. É com Xangai ou com a Cidade do México: que são centros econômicos de países subdesenvolvidos, e nada mais. E, por isso, têm os seus impulsos de urbanidade, mas não enganam: estão, sempre, e estarão, fechadas no México, na China ou no Brasil - e isso é indisfarçável nos seus traços. Pequenas correções plásticas não substituem fatalidades geográficas.

São Paulo é mesmo um gigante deformado. Mas, eu diria, um gigante simpático. Desengonçado e antipático, às vezes, mas com bom coração. São Paulo não nasceu assim: aprendeu, com o tempo e as más companhias, seus modos grosseiros. Que, mesmo que reprováveis, não me parecem naturais. É que a cidade suporta, há décadas, uma rotina dura e pesada, que consumiu sua delicadeza original. E endureceu sua superfície. Repare, porém: apesar de sua grotesca aparência, São Paulo pode se revelar, quando menos esperamos: e soltar, tímida, um breve sorriso, de alguém que já foi, e tenta ser novamente, simpática. Quem sabe consiga, nos seus próximos 450 anos.

Eduardo Carvalho
São Paulo, 23/1/2004

 

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