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Sexta-feira, 30/1/2004 Canto Infantil Nš 3: Série Vaga-lume Daniel Aurelio Tenho a convicção de que são três as séries de livros clássicas para a formação do jovem brasileiro: a "Primeiros Passos", da Editora Brasiliense; a "Para Gostar de Ler" e a "Vaga-lume", da Ática. Ocupam encorpado espaço na estante, apesar de estarem, constantemente, em muitas das minhas trips nostálgicas. A série "Primeiros Passos" (que homenageei em texto especial para o IG nas comemorações dos 60 anos da Brasiliense) não chega a ser propriamente uma coleção infanto-juvenil, mas contribui para preservar, com uma simbiose ímpar de escrita leve e rigor teórico, os fundamentos da ciência, arte, filosofia, religião e cultura. Conhecimento que deveria fazer parte do cardápio básico do adolescente brasileiro tivesse o nosso sistema educacional um mínimo de dignidade. "Para Gostar de ler", por sua sorte, cumpre papel similar, porém no campo literário, apresentando ao leitor em modelagem alguns dos grandes autores da literatura mundial, em contos ótimos, significativos e palatáveis. Conheci Guimarães Rosa e seu "A terceira margem do rio" no volume 10 da coleção. A minha edição possuía uma pequena entrevista com os autores, algumas delas composições in memoriam. Em outras, aprendi a "gostar de ler" o humor malandro e cínico de Stanislaw Ponte Preta. Que outra série juntaria, num mesmo exemplar, personalidades das letras tão distintas e talentosas? A mais controversa, talvez por isso tão lida, é a série "Vaga-lume"; são mais de duas décadas cindindo educadores e especialistas em literatura. Também causa espécie nas bibliotecas públicas. Não fiz qualquer levantamento oficial, mas seguramente estão entre os livros mais registrados em listas de empréstimos. A quantidade de atrasos e apropriação indevida deles não deve ser menor. O segredo não é nenhuma fórmula mirabolante. Quem desenvolveu seu projeto não padecia do espírito caótico do corpo diretivo da CBF. É a lógica da simplicidade. Simplicidade de um Guimarães Rosa, que usou da criatividade para chegar o mais próximo da força emocional das expressões corriqueiras. O óbvio e o sintético estão aí para nos livrar dos desvios de trajetória da arte (vide modernismo estapeia Bilac, punk deflora o progressivo, etc.). A "Vaga-lume" é isso: o recanto do singelo. O ritmo é de thriller e os protagonistas são jovens envoltos em algum tipo de mistério. Existem algumas exceções, menos frenéticas e mais dramáticas. É recorrente o adolescente em contato com o meio urbano; e com ele suas desigualdades, idiossincrasias e alma agridoce. Algum equívoco ou certo ar inverossímil escapa (impossível agradar sempre); natural que existam oscilações de inspiração em uma série tão extensa e antiga. Acusar a "Vaga-lume" de coletânea de temas rasteiros turbinados pelo pique de aventura, entretanto, é cair na periculosidade intempestiva da pré-noção. Fixar-me-ei no meu vaga-lume predileto: Tonico, de José Rezende Filho, em nenhuma instância pode ser taxado de uma trama escapista; nele, além da bela amizade e cumplicidade de Tonico e Carniça, podemos observar as relações sociais em sua verdade. O pernambucano Rezende Filho (falecido em 1977) deixa de lado o jeito marxista-ortodoxo de entender o mundo, com aquelas enfadonhas e ingênuas divisões macro da sociedade reguladas por aspectos exclusivamente econômicos: os ricos (burgueses maus), pobres (vítimas dos primeiros) e no meio, como estorvos a boiar anêmicos, a classe média. Evidente que dá nojo ver celebridades e suas jóias alugadas na Ilha de Caras com tanta miséria, e ninguém duvida de que os tomos d'O Capital formem a mais aguçada e precisa análise do capitalismo de todos os tempos. Mas daí a propor uma linearidade, comportamental até, é dose. E Rezende Filho dribla, com astúcia, a saída fácil do maniqueísmo para o cenário de pobreza que cerca a enlutada família de Tonico e, na outra ponta, o menino do espírito livre Carniça. Preconceitos, intrigas, moralismo, servilismo, injustiças, cumplicidade e malandragem. Nada difere, portanto, dos sentimentos que os ricos nutrem de si e dos seus. A diferença está no estômago. Congele a última frase. O dilema de Tonico começa aqui. É a estética da fome de Glauber Rocha sem militância. Tonico perdeu o pai, e deveria assumir seu posto no provimento da casa. Precisava "virar homem", ainda que não passasse de um meninote. E o Carniça (garoto andante, desprendido e bom de bola), visto com péssimos olhos pela sua mãe, tornava-se, de certo modo, sua figura paterna. O modelo masculino, apesar de terem quase a mesma idade. O que Tonico precisava ser, Carniça já era. Dono do seu destino e de alguns péssimos hábitos, como o de sorver nicotina em um cilindro. Não disse nada sobre o livro, e já foi desenhado meia dúzia de perspectivas divergentes dentro da mesma esfera de convívio, sem que fosse apontado ou induzido o "caminho certo". Tonico não é nem a loirice saltitante de Xuxa e genéricos, nem professa a lista de boas maneiras do palhaço Carequinha. Não é a MTV, nem os diretórios acadêmicos de faculdade. Rezende versa sobre a falta, mas não faz uma busca ferrenha por ela; apenas narra o desenrolar de uma vida humana, ponderando excessos e florescendo poesia de trivialidades. O livro é, sem dúvida, um dos momentos mais felizes da literatura infanto-juvenil do Brasil. E não é um título menor da série. Divide com A Ilha Perdida, Os barcos de papel, Mistério do Cinco Estrelas e o belíssimo Meninos Sem Pátria, o posto de maior êxito comercial da Vaga-lume. Sinceramente, se topar com seu filho de doze ou treze anos com um desses, anime-se. É uma boa pedida, embora não creia que o hábito da leitura, por si e indiscriminado, vá transformar o planeta e tal. Conheço amigos que entre Paulo Coelho, Zibia Gasparetto e Veríssimo, já passaram dos 200 livros lidos, números muitos superiores à média da população. E não saíram disso. E tem também os "filósofos", que devoraram tantos Morus, Hobbes, Pascal e Voltaire que esqueceram de que havia vida para além da caverna. Acabaram tragados para dentro das suas páginas. Fortalecer o senso crítico. Diversificar. Escolher o caminho menos usual, para depois voltar aos trilhos. Chuva e sol. Saber sem crises, divertida e nada banal aventura. Pois deixe o moleque ler em paz. São esses que, no futuro, lerão Marx sem cabrestos e Maiakóvski sem afetações. Para ir além Daniel Aurelio |
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