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Segunda-feira, 9/2/2004 Hilda Hilst (1930-2004) Fabrício Carpinejar Hilda Hilst, autora de 41 livros, morreu na madrugada de quarta-feira, dia 4, aos 73 anos, no Hospital Universitário da Unicamp, em Campinas, interior de São Paulo, onde estava internada desde o último dia 2 de janeiro. A escritora nasceu em Jaú, no interior paulista, em 21 de abril de 1930, e morava há 40 anos em Campinas na chácara Casa do Sol, com a escolta de dezenas de cachorros e gatos. Mais do que ir ao fim do mundo, Hilda Hilst foi ao fundo de si mesma e não se esgotou. Em Estar sendo, ter sido (Nankim, 1997), encerra a obra com um verso lancinante: "Essa sou eu.// Poeta e mula". Com lealdade e coerência, carregou sozinha sua loucura orquestrada, sua fome pelo absoluto no mínimo, sua curiosidade erótica. Hilda Hilst amava Hilda Hilst enquanto Hilda Hilst odiava Hilda Hilst. Ria pastoso do destino que a fez buscar o desejo sem recompensa. Tantas foram que seu temperamento ainda não acabou de dizer o que queria. "Não há silêncio bastante para o meu silêncio." Em Hilda Hilst, o amor não se opera, nem pode ser extraído ou reaproveitado em transplante de órgão. Nas décadas de 60 e 70, esteve ao lado da crítica. Anatol Rosenfeld, no prefácio de Fluxofloema, a escalou no seleto grupo capaz de realizar três gêneros com volúpia: os versos, a dramaturgia e a ficção. Em Poesia (1957-1967), falava da dificuldade de verbalizar o amor, talvez porque o mesmo suspiro que inicialmente comove já seja o estertor da paixão. O ápice é o fim. Enquanto a maioria da geração de 60 engajava-se no combate à ditadura militar, a prosa de Hilda era livre, ou quase isso, uma "prisão libertadora", como afirmava Antonio Carlos Villaça. "Pássaro-palavra, livre, volúpia de ser asa na minha boca." Seus versos terminariam empalhados nas antologias, caracterizados como sérios, rilkeanos e incompreendidos pelo público. "Chamaram minha obra de palimpsesto. Depois disso, quem iria me procurar?", ela me confessou. Tudo mudou na década de 90. Hilda ficou cansada da prosa certinha. Decidiu fazer sátira para rir. Lançou a antologia erótica O Caderno Rosa de Lory Lamby, Contos de Escárnio e Cartas de um sedutor. A prosa circense não deu certo. Nem leitores, muito menos críticos gargalharam. Antes "senhora das alvoradas", ficou conhecida como "obscena senhora H". Trocaram apenas os rótulos. A escritora derrubou as fronteiras entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. A casualidade mecânica do sexo é convertida em catarse alucinada. Pulsação e metamorfose. A protagonista Hilé, de A obscena senhora D, quer ser um grande animal. "Ando galopando desde sempre búfalo, zebu, girafa e me afundo nos capins resfolegando." A carne exala inquietação mística, antropofágica. Não só comer outro corpo, mas também mastigar o mundo, mastigar Deus. "Engolia o corpo de Deus a cada mês, não como quem engole ervilhas ou roscas ou sabres, engolia o corpo de Deus como quem engole o Mais. Por não acreditar na finitude me perdia no absoluto infinito." Fez a fusão do erotismo com a religião, da eucaristia com o sexo, do altar com a cama. A Senhora D é uma mulher no encalço de sua imagem e que sente prazer em não encontrá-la. "Engasgo neste abismo, cresci procurando." É a ânsia da pureza na degradação. Hilda desarma a realeza do homem, que mais preocupado com o seu desejo, o desejo do outro acaba atrapalhando o seu gozo. Ferina e insurrecta, compartilha a filosofia da alcova com o Marquês de Sade. "Todo o homem de pau duro almeja ser déspota." O sexo é exercício positivo contra a opressão particular. As histórias entretêm e, ao mesmo tempo, mantêm uma peleja característica do embate socrático. Perguntar em Hilda Hilst é se aniquilar. Em sua constelação sem favores e chantagens, fazer-se homem é ainda ser mulher. A perversão nunca perde a inocência fundadora. Em O caderno rosa de Lory Lamb, uma criança rouba os originais do pai e copia em seu diário passagens pornográficas, sem entender absolutamente nada. Hilda realiza o sonho do cineasta Buñuel, que queria colocar uma criança de branco declamando textos pornográficos como cantigas de roda. A poeta não hierarquizava a vida. Seu exorcismo era um milagre que servia aos outros, nunca em seu benefício. Trechos da minha conversa com Hilda Hilst em 1996 "A gente vai envelhecendo e fica com o pânico da morte. Tenho mania de deixar o rádio ligado para perder a solidão." "Duvido da sanidade do mundo." "Quando escrevia as novelas bem comportadas, mesmo assim os críticos tinham dificuldades de assimilar. Primeiro falaram que escrevia palimpsesto, depois tábua de música. Estava inconformada. Ao invés da tristeza, de me angustiar com a idéia de que fiz um bom trabalho para ninguém ler, decidi brincar um pouco. Achei que minha trilogia do sexo seria uma coisa divertida, mas apenas escandalizei meus amigos. O meu próprio enfoque é o desfocar o olho do outro. Meus personagens têm o perigoso hábito de pensar e brincar com a sexualidade, quando o mundo está interessado no acaso mecânico." "Quem coloca fervor e paixão na linguagem, sempre será uma tarada. Minha tara é a linguagem." "Não tenho destino para o sucesso. É problema de astros. Eu acho que tudo é culpa do signo de Saturno, meu ascendente. Demoram a me perceber. Tenho mais de 30 livros publicados e ainda me tratam com esmolas." "Fiz ilustrações para Da Morte, Odes Mínimas. Tenho essa ligação anedótica da relação a dois, de fazer as pessoas aceitarem os vícios como patrimônio." "Essa bobagem de sexo na velhice não atinge o poeta. Escrevo justamente para não envelhecer. Posso ter 70 ou 80 anos, vou continuar erótica. A imaginação vai assumindo o controle das lembranças e ninguém segura. Sei respeitar a ausência do amado e ainda assim desejá-lo. 'Desperdicei meu corpo para aliviar minha alma', acho que escutei isso num filme." "Ser esposa é desagradável e chato. É ser tratada como comida requentada. Estou ligada ao amor absoluto. O amor é o esforço da perfeição. Nada mais do que o esforço." "A morte deve ter apelidos. O que eu sinto pela morte, a morte sente pela minha vida. É um medo mútuo." Nota do Editor Fabrício Carpinejar é também poeta, autor de cinco livros; entre eles, Caixa de Sapatos (2003). Este texto foi originalmente publicado na revista Storm, editada por Helena Vascocellos em Lisboa. (Reprodução autorizada pelo autor e pela editora.) Fabrício Carpinejar |
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