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Sexta-feira, 13/2/2004
Mulheres de cérebro leve
Ana Elisa Ribeiro

Muitos livros de pesquisa acadêmica são chatos de ler. Mas se tem um assunto que me fascina, às vezes mais do que a literatura, é a história social da mulher. Eu, que nasci sob esse sexo misterioso, enrolada sobre mim mesma, num abismo interno de entranhas e sentimentos, morro de curiosidade sobre os pesos que carrego nos ombros.

Há pouco estava numa livraria e deparei com uma belíssima coleção de livros sobre a história da mulher. Cada imenso volume tratava de uma época. E quis ter todos eles, a coleção inteira na melhor prateleira de minha estante. Mas não deu. Meu salário não comprava aquela preciosidade editada em Portugal.

Ser mulher tem peculiaridades interessantíssimas. Quando me perguntam sobre minha preferência sobre o sexo do filho que carrego no ventre, sempre me bate certa tristeza, muito misturada ao receio de ver minha filha sofrer certos preconceitos resistentes ao tempo e ao avanço tecnológico.

Desde pequena escuto dois bordões: "não se exponha" e "feche as pernas". Muito curioso que sintam falta em mim de coisas que eu mesma não sinto. Se não gosto de saias, nem de sandálias, nem de maquiagem, então conclui-se que eu seja lésbica. E veja que conheço lésbicas vaidosíssimas.

Os amigos do sexo masculino questionam o que rotulam de "cisma" minha. Dizem, em coro: "não é bem assim, a sociedade mudou". Mas quando ficam sabendo que a gravidez ensejou caretas do chefe, finais de contratos e até mesmo uma ameaça sobre os vencimentos que receberei durante minha licença maternidade, enrugam a testa e quase pedem desculpas.

Absurdo que ainda se pense na mulher como um ser quase inapto. Certa diferença nos estilos é até de agrado, afinal, seria sem graça que fôssemos, homens e mulheres, todos iguais. Não me apeteceria ser um desses machos que cultivam músculos, coçam o saco e arrotam como se fossem animais. Mas não gosto de sentir como se minha competência profissional ficasse comprometida pela gravidez.

Há meses tive o prazer de ler um livro chamado A palavra impressa - Histórias da leitura no século XIX, publicado pela Casa da Palavra, de autoria de Cyana Leahy e Martin Lyons. E do fervor com que fiz minha leitura, colhi a seguinte pérola historiada por Lyons: "a leitura solitária de romances era vista como um perigo para as jovens, e mais ainda para as mulheres casadas, embora a estas fosse permitida uma maior flexibilidade. O discurso médico dominante no período reforçava as crenças patriarcais sobre a necessidade de 'proteger' as mulheres e adolescentes contra os textos perigosos".

Imagine que ser uma jovem leitora ainda não dá camisa a ninguém. Pela vida afora, escutei muitas vezes que devia ler menos, para não ficar louca ou mal-amada. Segundo os mais velhos, uma moça inteligente não segura casamento. E havia, ainda, o risco de que a leitura de romances e de textos técnicos comprometesse minha fertilidade.

O discurso científico, e não apenas o médico, ganhou bons postos corroborando teses muito mais culturais do que empíricas. É interessante lembrar que todo pesquisador é humano, pelo menos neste planeta. E enquanto ser humano, a observação jamais será imparcial. E a pesquisa científica é feita por um observador. Sendo assim, alguém inserido em certa comunidade, cultura, certo reduto, certa "comunidade interpretativa", como diz Stanley Fish.

Lyons continua a aprofundar as "explicações" da ciência acerca da mulher leitora: "A habilidade de leitura das mulheres, pensava-se, era determinada por fatores fisiológicos. As mulheres tinham o cérebro mais leve que o homem, o que as tornava inaptas para tendências intelectuais. A forma do cérebro feminino, segundo essa visão, enfatizava as faculdades intuitivas da mulher, mas limitava seu poder de raciocínio, em comparação com o cérebro do homem. Temia-se que uma sobrecarga das emoções femininas traria como conseqüência um enfraquecimento físico. Altos níveis de estímulo produzido pela leitura de romances seria prejudicial, causando histeria e a perda da fertilidade".

E então fico aturdida já que meu cérebro mais leve deveria impedir certos desenvolvimentos. Além disso, meu raciocínio mais lento não me permite agir com a precisão dum homem. E todos os homens do mundo devem ser de admirável inteligência. Meu físico mais fraco deveria impedir que eu suportasse as dores do parto, por exemplo, enquanto meu irmão surta por um corte no dedo. Sobre a infertilidade... devo confessar que todos os livros que li foram fingimento. Eu apenas andava com eles pelas ruas, pra transgredir. Mas guardava meu sistema reprodutor pra este bebê que me habita.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 13/2/2004

 

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