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Quarta-feira, 11/2/2004
Imaginação capturada: uma caloura na Berlinale
Daniela Sandler

Cenário: uma cidade alemã, domingo de manhã, a avenida quase deserta. Chove granizo, o vento cospe a chuva no rosto dos passantes, uma senhora quase escorrega. O céu escuro pesa sobre a catedral em ruína. A cena é de um silêncio sinistro, cortado apenas pelo ruído de fundo das pedrinhas de granizo batendo na calçada. Os transeuntes apressados fitam o chão, soturnos, sonolentos. Entram no prédio ainda deserto e meio escuro, onde mais de meia centena de pessoas já se refugia. Carrancudas, esparramam-se pelo chão, provavelmente há horas, sobre colchonetes, cobertores, travesseiros. As pessoas estão organizadas em fileiras, e os recém-chegados não escondem a irritação ao ter de tomar lugar no fim. Os poucos que conversam o fazem em voz baixa.

Fitando a cena, eu me pergunto: O que fazem essas pessoas? Qual a razão de sua espera? Suponho que poderia ser uma fila para a ração de comida, parte da vida no pós-guerra. Ou poderiam ser desabrigados – assim como a catedral, a guerra arruinara muitas casas. Dou tratos à bola sem resolver o mistério, até ser despertada de meu devaneio pela mulher atrás de mim, cutucando sem querer com seu guarda-chuva. E então, como num passe de mágica, os guichês abrem, iluminam-se, e a nossa fila começa a andar. Tenho de andar também, há vinte pessoas na minha frente e umas trinta atrás de mim. Essa cena não estava na tela, mas esteve, sim, no Festival de Berlim. Todos os dias a cena se repete nos pontos de venda de ingressos. Tem algo mesmo de guerra essa luta por um lugar nas sessões desejadas, e confesso sentir uma excitação de vitória quando, de posse de meus ingressos, conquisto também o espaço precioso de um assento de cinema.

Não é de surpreender esse auê. O Festival de Berlim, ou Berlinale, está entre os três maiores festivais competitivos de cinema do mundo, junto a Cannes e Veneza. E é o maior em termos de participação do público. Por um lado isso é uma beleza, pois possibilita que gente anônima como eu e você possa assistir às estréias badaladas e roçar ombros com o diretor ou a atriz principal. Por outro lado, essa abertura traduzida em imensa popularidade significa também imensa concorrência por entradas.

É preciso compreender as regras do sistema de vendas, programar com antecedência os dias certos para a compra de cada ingresso desejado, acampar nas filas das bilheterias, contabilizar o tempo de ir e voltar de cada cinema que faz parte do festival, programar a chegada com antecedência para garantir um bom lugar, desmarcar compromissos posteriores porque as sessões muitas vezes atrasam (embora espectadores atrasados não entrem), e estudar a programação cuidadosamente para coordenar os horários e locais dos filmes que se quer ver. No meio de tudo isso, é necessário achar tempo para ler as sinopses dos cerca de 400 filmes divididos entre mostras paralelas e competição principal, na esperança de conseguir escolher os filmes com alguma dose de informação e gosto pessoal...

Mais que a soma de todos os filmes

Acompanhar a Berlinale toma o corpo e o espírito durante os dez dias do festival, mesmo entre uma sessão e outra. Para quem, como eu, não se incomoda de respirar cinema, é uma maravilha – que pode virar fácil uma obsessão, como no caso das pessoas que se postam às oito da manhã diante da bilheteria que só abre às dez. Vale a pena todo esse tempo e esforço? Afinal, um filme é só um filme. Vários dos filmes, certamente todos os mais concorridos, acabam entrando em cartaz mais cedo ou mais tarde – alguns, até mesmo durante o próprio festival. Por que não esperar para vê-los com calma, no cinema mais perto de casa, sem o clima de histeria coletiva da multidão e com ingresso mais barato? Ou mesmo em casa, em DVD, quando aquele alemão altão e pescoçudo certamente não vai sentar na cadeira da frente?

Porque, simplesmente, não é a mesma coisa. Eu mesma, por exemplo, desde que me entendo por cinéfila acompanho o Festival de Berlim nas notícias e resenhas de jornal. Depois de todos esses anos o festival soa pra mim quase mítico, e é um sonho acontecer de eu estar em Berlim por um ano e poder participar. Tomar parte na Berlinale é muito mais do que a simples soma de todos os filmes assistidos individualmente. A participação começa na aventura das filas, claro; e se estende ao clima elétrico dos saguões de espera e tapetes vermelhos. Dentro das salas lotadas, em meio ao burburinho de centenas de outros fãs igualmente imersos no mundo do festival – a cabeça cheia de títulos, imagens, expectativas, boatos –, a sensação de assistir ao próximo sucesso mundial em primeira mão, a emoção diante de um filme particularmente belo, e até mesmo a decepção com uma fita ruim são exaltadas, devolvendo a magia à experiência de ver um filme.

Além disso, a mostra é um evento da cidade, que irrompe para além das salas de cinema e toma Berlim física e simbolicamente. A constelação de cinemas, situados principalmente ao redor de dois focos urbanos principais, esparrama o público do festival pelas calçadas, ruas laterais, estações de metrô, restaurantes e barraquinhas de salsicha. Jornalistas e outros profissionais credenciados passeiam pela cidade ainda com o crachá oficial esquecido no pescoço; espectadores carregam a sacolinha do festival a tiracolo, ou empunham o catálogo diante dos olhos. Num café, na mesa ao meu lado, um homem fala ao celular, em inglês, sobre o filme que irá ver à tarde. Em cada canto da cidade há algo do festival. Pôsteres e cartazes nas ruas; jornais e revistas que estampam fotos das estrelas no tapete vermelho; cobertura ao vivo pela televisão. O festival toma a cidade, e a cidade faz do festival ponto de honra e de autopromoção, é claro, que ninguém é besta.

Cabe a cada espectador também fazer da Berlinale o seu próprio uso. Muitos madrugam, estapeiam-se e pagam mais caro para ver o filme de estúdio hollywoodiano que uma semana depois vai entrar em cartaz em cinemas pela cidade inteira – por exemplo, Cold Mountain, de Anthony Minghella, superprodução estelar com Nicole Kidman e Jude Law. Depois, saem decepcionados, dizendo que o filme foi mais ou menos. Talvez o gosto seja esse mesmo – desdenhar a superprodução? Para outros, o encanto está em assistir ao filme com a presença da equipe – atores, diretor, roteirista, etc. Não há muita interação com a platéia, mas dá para ver de perto e em carne e osso os rostos que há pouco iluminavam a tela. E, no caso de um filme bom, é bacana aplaudir os realizadores. Dependendo da sessão, o diretor responde a perguntas dos espectadores, o que, se nem sempre explica o filme, em geral suscita outras questões interessantes. E, finalmente, o festival também oferece a chance de ver filmes independentes, às vezes experimentais, que dificilmente serão exibidos fora de mostras especiais.

A primeira vez na Berlinale a gente nunca esquece

Chega a hora de ir para o meu primeiro filme: a estréia de um dos títulos da mostra competitiva, no cinema principal, o Palácio da Berlinale – um edifício projetado pelo arquiteto-estrela italiano Renzo Piano, que contém teatro, cassino e restaurante. A face principal do prédio anguloso é uma fachada de vidro, que separa o saguão de pé-direito quíntuplo da praça côncava. No meio da praça estende-se o tapete vermelho, vermelhão-fosforescente, cercado por barreiras baixas. A montagem é festiva: um globo metálico, de discoteca, espalha reflexos prateados pela praça e pelas ruas ao redor. Um telão mostra entrevistas e cenas de festivais passados, e pela fachada enorme do Palácio jorra a luz ofuscante dos holofotes do saguão.

A platéia começa a chegar cedo, quase uma hora antes, e de novo se espreme em fila. Quando o acesso é aberto, as pessoas saem correndo pelas escadas, sem pudor, como rebanho em disparada. Eu tento manter a dignidade enquanto caminho para a minha seção, no topo do auditório, que tem cinco andares. Dentro do auditório gigante, lotado, há equipes de filmagem, e a iluminação sobre o palco é possante. A apresentadora anuncia o filme e também parte da equipe, que desfila sob aplausos antes do início do filme.

Em geral eu sou cética diante dessas encenações e comoções coletivas, mas desta vez eu me emociono, com a sensação de fazer parte de algo especial. Não adianta repetir a mim mesma que um filme é apenas um filme, que eu poderia assisti-lo aqui como ali, em Berlim ou em São Paulo, no Belas-Artes ou no vídeo, e não faria diferença. Não, nada disso me convence, nem mesmo o meu desconforto, encarapitada no poleiro do auditório e esticando o pescoço para enxergar a tela. Pois esse clima inebriante também me envolveu, e restituiu o encantamento quase ingênuo diante dos feixes de luz faiscando na tela – a imaginação capturada.

Sim, sinto-me um pouco besta de admitir... foi preciso mesmo tudo isso para fazer minha experiência especial? Um pensamento então me conforta: na época áurea de Hollywood, ir ao cinema também era um ritual e a encenação festiva fazia parte da experiência. Sinto-me reaproximada um pouco dessa história. Hoje em dia, não há mais como fazer do cinema de domingo um acontecimento: o público é tão grande, o número de filmes também, ninguém tem mesmo mais tempo, e nossa cultura é muito menos formal. Mas o rito sobrevive nessas ilhas de fantasia que são os festivais – não apenas para quem, como eu neste ano, pode participar. Também para você, aí, lendo este texto, ou acompanhando o festival pela tevê ou pelo jornal – como eu sempre fazia –, o festival cumpre um pouco dessa função de encantamento, nos fazendo esperar ansiosamente pela estréia deste ou daquele filme, projetando títulos e artistas como objetos do nosso fascínio, e nos fazendo esquecer, pelo menos por um momento, que um filme é apenas um filme.

Daniela Sandler
Berlim, 11/2/2004

 

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