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Quarta-feira, 18/2/2004 O Último Samurai Literário Paulo Polzonoff Jr Houvesse ainda homens honrados no mundo, a literatura não padeceria da mediocridade que se instalou. Tenho cá para mim que cada livro mal escrito - e publicado - é um ato de desonra do autor para com o próprio nome. Não importa o quão bem intencionado ele seja. Se falhou é porque não se dedicou o bastante àquilo que se propôs. E a vergonha da falha deveria ser mortal. Mas literatura - quem a faz e quem a vive (fez, viveu) sabe - não é apenas o ato da composição artística. Um homem sem talento em frente a um computador escrevendo um poema ruim ou um conto ruim é uma desonra para si e para os seus, por mais que os parentes o cubram de beijocas e abracetas e de votos para a Academia Toledana de Letras. Mas é apenas um homem sem talento escrevendo um poema ruim. Pior do que ele é um homem em frente a um computador escrevendo um bom poema ou até um ótimo poema e logo em seguida ligando para um outro poeta, ruim mas influente, elogiando-lhe a mediocridade, apenas para se manter em estado de graça com todas as pessoas. Não há honra nem há harakiri. Infelizmente, a psicanálise diminuiu - e muito - o suicídio entre os artistas. Por outro lado, instaurou o mundo da não-culpa, da não-responsabilidade e, por conseqüência, da não-honra. Gosto de pensar, apesar de ter certeza do meu erro, que alguns poetinhas ruins que se mataram (precisa citar nomes?) o fizeram por vergonha daquilo que escreveram. Podem até ter dado outra desculpa em público, mas, lá no íntimo mais recôndito, sabiam: aquele verso ruim lhes rendeu a morte. Nos meus sonhos mais infantis, imagino uma praça numa grande cidade. Pode até ser numa pequena cidade, mas aí não precisa ser uma grande praça. Nela se reúnem todos os dias os poetas e prosadores locais, para mostrarem seu trabalho. Também o público - e há crítico mais cruel? - se reúne na praça, para ouvir as últimas composições da poesia e da prosa. Na praça, todos os dias, há um suicídio. O poeta espeta a caneta bem fundo no abdômen, dá uma rodadinha para doer mais ainda e pede a um outro poeta, menos ruim do que ele, para lhe cortar a cabeça. É que o público não gostou do trocadilho, de nenhum trocadilho, e não lhe restou nada além do suicídio. Ah, o mundo seria outro se o harakiri, costume japonês do autoflagelo como expiação da desonra, tivesse vingado em terras ocidentais. Dá para contar nos dedos os nomes hoje consagrados que figurariam em enciclopédias ou mesmo em apostilas de literatura. Todos mortos pela própria espada, deixando ao seu lado mulheres orgulhosas do espírito impetuoso que tentou escrever um conto legível mas que, diante da falha, preferiu a morte. Morte que também provou, por harakiri, o romancista pregador das liberdades individuais, que chama o crítico de canalha, mau-caráter e coisas do gênero, mas que na primeira oportunidade que tem manda uma carta para o dono do jornal no qual escreve o crítico, pedindo sua degola. Como poderia não se envergonhar o romancista por tamanha covardia? Os críticos tampouco sobreviveriam à institucionalização do harakiri por estas terras cheias de desonra. Homens de letras fartas para seus apadrinhados, morreriam todos por elogiar aquele livro do amigo do tio do cunhado do cachorro que lhe é de alguma estima e alguns dinheiros. Assim como se mataria aquele que, usando a palavra errada, disse a verdade necessária, mas não ouvida - o meu caso. Gosto de pensar que, se houvesse punição para a vergonha que é falhar em sua expressão, a nós restariam duas opções apenas. Uma delas seria a morte diante do erro e da vergonha dele decorrente. A outra seria o cuidado extremo com aquilo que se escreve, que se pensa e se põe no papel. Um cuidado que nada tem a ver com covardia ou com medo da reação alheia, e sim com o esmero do golpe dado no corpo alheio: olhos nos olhos, espada no ventre e o corpo caído do homem vencido: a honra de ser defenestrado. E para os leitores despreparados que vêem na palavra alheia sentidos outros, tangenciais ao real significado? Para o bem da perpetuação da espécie, a eles não seria concedido o direito ao suicídio, ao harakiri; por outra, a eles pesaria um castigo terreno: os olhos seriam furados e em seus dorsos seriam tatuados os crimes contra a honra, própria e alheia, que cometeu. Posso imaginar homens de beca vagando cegos por entre as alamedas da cidade universitária, com tatuagens enormes pelas costas, com inscrições como "Uma abordagem psico-epistemológica do romance eduardiano". (*) Se você pensou em me escrever dizendo que com este texto eu proponho a censura ou que eu estou querendo matar alguém por questões estéticas e tal, por favor, cometa harakiri. Ou vá tomar um porre de saquê. Nota do Editor 1 Paulo Polzonoff Jr. assina hoje o blog O Polzonoff, onde este texto foi originalmente publicado. (Reprodução gentilmente autorizada pelo autor.) Nota do Editor 2 Leia também a crítica de Paulo Polzonoff Jr. ao filme O Último Samurai. Paulo Polzonoff Jr |
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