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Sexta-feira, 5/3/2004 O chinês do yakissoba Eduardo Carvalho Apareceu recentemente, na calçada da Avenida Paulista, em frente à sede do Banco Safra, dois casais de chineses, com dois fogões improvisados, servindo yakissoba aos pedestres apressados. É provável que sejam parentes; um se instalou ali antes, e o outro, ciente da prosperidade do negócio, aderiu à idéia do primeiro. Já há poucos meses, quase todo dia eu acompanho o movimento do mercado: tem crescido animadoramente. É uma tortura aos esfomeados, depois de um cansativo dia de trabalho, resistir ao cheiro do molho e dos vegetais fritos, que acompanham o macarrão. Quem caminha pela calçada, quem aguarda o ônibus atrasado, quem entra na estação do Metrô - todos os transeuntes olham, curiosos, o que é que aquele chinês franzino prepara numa panela gigante. Seu cuidado com a limpeza da calçada e a elegância da sua boina branca inspiram confiança; nada contra os ambulantes normais: mas esses chineses, em silêncio, se destacam do resto. Eu precisava conferir; não é possível que esse macarrão fosse assim tão ruim. E não é. A qualidade da carne e do frango, do shoyo e da cebola, da massa e dos vegetais é, por assim dizer, razoável. Perfeitamente adequada para se comer de pé e encher a barriga. É muita ingenuidade achar, como pretendem descolados ou desinformados, que estão na rua os melhores alimentos. Quem quiser comer bem que sente e pague por isso, numa das várias opções que São Paulo oferece. O método dos chineses talvez seja reprovado por sanitaristas sistemáticos ou gastrônomos sofisticados. Mas é improvável que alguém se contamine gravemente comendo aquele macarrão; e, por 2 reais, a qualidade da comida é impecável. Pode ser que, durante os dois dias seguintes, seja levemente incômodo carregar aquela inextirpável mistura oleosa na barriga; na hora, no entanto, isso é desimportante e imprevisível: o único objetivo é aliviar temporariamente a fome. E, para isso, a combinação da qualidade do yakissoba com o preço e local em que ele é oferecido é, mesmo que de forma quase involuntária, muito eficiente. O absoluto sucesso da empreitada chinesa ensina uma coisa que a maioria dos brasileiros ainda não aprendeu, nem a executar nem a admirar: como abrir e tocar um negócio num mercado livre. É muito mais fácil reclamar dessa interminável crise e exigir desmerecidos benefícios estatais. Trabalhar, que é bom, com honestidade e competência, muito pouco. Seria muito mais fácil, veja só, que, carregando uma placa no pescoço, esses chineses fingissem analfabetismo, e esmolassem pelas ruas paulistanas. Como, por sinal, preferem fazer vários imigrantes, ou pior: brasileiros mesmo, com total capacidade produtiva, resmungam da ineficiência do governo e se arrastam pela indigência, como se fossem incapazes de solucionar seus mais simples problemas pessoais. Sem a mínima vergonha. É verdade que nem sempre a pobreza é resultado exclusivo de preguiça e descaso - dos pobres, digo. Eu não acho isso, de forma alguma. Esse é um problema complexo, com diferentes e escondidas origens, e não é nem disso - da pobreza - que estou tratando. É que já sabemos compreendê-la e reconhecê-la, até certo ponto, mas ainda temos dificuldade para admirar um fenômeno mercadológico, administrado por gente que - apenas com esforço pessoal - conseguiu progredir financeiramente. É importante, claro, mantermos a sensibilidade alerta, e cooperarmos com quem realmente precisa de ajuda. Só que é preciso também acabar com a mentalidade que admira a pobreza e condena a riqueza, muito comum em ambientes intelectualizados brasileiros. E começarmos a destacar e animar o empreendedorismo de sucesso, que ainda permite, no Brasil, uma sólida e ampla ascensão social e econômica. Ou serão os pobres as próprias vítimas de sua glorificação. Parabéns, USP A Universidade de São Paulo completou 70 anos, em fevereiro, o que deveria suscitar um certo debate sobre a sua função e o seu futuro. O que vi nos jornais, no entanto, foi mais a celebração de sua história - que é curtíssima - e a promoção de suas estatísticas - que, isoladas, não valem muito. A USP é sempre elogiada como a "melhor universidade do Brasil", como se isso significasse muita coisa. Não significa. Uma universidade é - ou deve ser - um centro de altos estudos, acessível a uma elite preparada para enfrentá-los. E nem esses altos estudos precisam ser sobre o Brasil nem essa elite precisa ser brasileira. Na USP, eles não são. O que significa que ambientes assim devem ser comparados com outros, estrangeiros. E mais ainda: significa que a própria USP deveria se abrir mais a novidades acadêmicas internacionais, e não se encobrir de elogios por ser "padrão de excelência universitária" em um país de terceiro mundo. É, com freqüência, lembrado e louvado, por exemplo, o grupo francês - do qual Levi Strauss fazia parte - que, quando fundada a Universidade, veio a São Paulo para montar cursos e liderar pesquisas. Mas essa herança já deveria ter sido superada por gerações posteriores. O que se vê, porém - na área de humanas, especialmente -, é que as referências são poucas e atrasadas. Enquanto o "aluno USP" deleita-se com Lacan, como se fosse grande novidade, em Oxford estuda-se com Theodore Zeldin, que abre novas perspectivas para se interpretar a história. O maior problema da USP acho que é justamente este: é que a Universidade está contente com classificações bobas - como o fato ser "a melhor do Brasil" -, e ao mesmo tempo isolada do pensamento de ponta internacional. Depois, como conseqüência, acaba achando, por exemplo, que o sistema de cotas é uma novidade eficiente, enquanto o resto do mundo abandona essa idéia, e desperdiçando associações úteis com o setor privado, por motivos puramente ideológicos. Cultivando idéias velhas, a USP corre o risco de já morrer nova. Inculta e feia Diga "vou no banheiro", em vez de "vou ao banheiro". Não se incomode também em dizer que vai "chamar ele", e vez de "chamá-lo". Certos deslizes gramaticais já se incorporaram ao português falado, e não comprometem a precisão da conversa nem a beleza da língua. Mas nunca jamais fale ou escreva algo como "vou estar dando aula", ou "vou estar publicando um livro". Eu achava, para ser honesto, que, de tão óbvio e feio, o abuso do gerúndio fosse exclusividade de secretárias desavisadas, mas não: está cada vez mais disseminado, e é usado inclusive por professores dispostos a ensinar os outros a falar bonito e a escrever direito. A insistência no gerúndio tem duas origens e um objetivo. As origens são as seguintes: a primeira é que dizer "vou estar entregando o material" perde em precisão para "vou entregar o material", e deixa levemente em aberto o prazo e a possibilidade de conclusão da tarefa. Usam esse artifício os lentos e os confusos, que depois não querem ser cobrados pela ineficiência. E a segunda origem: é que nossa comunicação anda cada vez mais infectada por eufemismos, e o gerúndio confere uma certa leveza a afirmações e a exigências - "vou estar cobrando o material", por exemplo, parece mais suave do que "vou cobrar o material". E o objetivo de quem aplica o gerúndio em ocasiões desnecessárias é que é pior: que é o de querer falar ou escrever com elegância. Só que sem conseguir. O que acaba numa situação que entrega sua ignorância e sua frustração, na tentativa de ser o que não é. Vou avisando: fale e escreva errado, despreocupadamente, mas não faça isso quando pretende se mostrar correto. É patético. Eduardo Carvalho |
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