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Segunda-feira, 29/3/2004 O Paulinho da Viola de Meu Tempo é Hoje Alexandre Petillo Você escuta um estalo. Algo quebrou dentro do peito. Na tela grande, um close na boca gigantesca. A voz é conhecida, a música ainda mais. Marisa Monte entoa "Carinhoso", de Pixinguinha. Sim, é aquela, "meu coração/não sei por que...". É batida, já tocou milhares de vezes, mas não dá para evitar o nó na garganta e a taquicardia. A câmera só mostra a boca de Marisa durante quase toda a canção. Os olhos marejam. A voz de Marisa e o violão de Paulinho da Viola. Só. E isso acontece lá pelo meio do filme. O coração já tinha ameaçado deixar o peito algumas vezes, mas você não está preparado. Nunca está. Meu Tempo é Hoje, documentário sobre a carreira e o cotidiano de Paulinho da Viola. É a intimidade de um astro tímido, as idiossincrasias de um gênio. É um dos mais belos filmes brasileiros já vistos e certamente o melhor filme de música produzido no Brasil. Dirigido magistralmente por Izabel Jaguaribe - com roteiro e entrevistas de Zuenir Ventura - Meu Tempo é Hoje é poesia a cada polegada da película. Revela manias, joga sinuca, constrói alguma coisa em sua marcenaria, compra um livro raro. Coisas simples, prosaicas, mas que se transformam em poesia nas mãos de um homem que só sabe fazer bonito. Paulinho atravessa a rua e entra em uma livraria. Lá, contente, recebe do livreiro o encomendado: o título do livro, "Saudade Brasileira". Paulinho se queixa: ele não sente saudade. Saudade e os efeitos do tempo são assuntos recorrentes no filme - assim como na obra musical de seu protagonista. As teorias de Paulinho reinventam o tempo. Ele não sente saudades porque não vive no passado, mas sim o passado vive nele. "Meu tempo é hoje, vivo o agora", insiste Paulinho o tempo todo. Antes de tudo, é uma ode ao momento presente, à capacidade e à vontade que se deve ter em aprender a moldar, utilizar, viver o dia que se apresenta. Mas como seu chorinho, o filme de Paulinho não é melancólico. Passeia pela tristeza, pela alegria. É o mesmo homem que compôs "Sinal Fechado" e "Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida". A leveza e a suave presença de Paulinho nos levam a um passeio pelo Rio, por histórias do samba, por telas maravilhosas de nossa música. Desse modo, transitamos da Barra da Tijuca ao bairro de Oswaldo Cruz. Passamos, de uma sessão refinada entre Marisa Monte e Raphael Rabello, para uma tarde rasgada, em Xerém, com Zeca Pagodinho, passando por uma peixada com samba com a Velha Guarda da Portela. Os momentos, inclusive, que Paulinho passa com a Velha Guarda da Portela estão entre os mais emocionantes. Gênios da história da música popular brasileira, como Monarco, Argemiro do Patrocínio, Jair do Cavaquinho, entre outros, prestam reverência a Paulinho. Ele chega como um líder, como o escolhido. Mesmo sendo muito mais jovem, Paulinho é tratado como mestre entre os mestres. Quando cantam juntos, é de arrepiar. Monarco, inclusive, tem algumas das tiradas mais divertidas do filme, como quando explica que o samba afastou o amor da sua vida ("trabalhava na feira, depois ia beber e tocar, chegava em casa todos os dias depois das dez. Ela não aguentou") e da falta que faz a mulher no batuque ("samba sem mulher não tem graça. Vira só um bando de negão cantando"). Passam ainda pela tela, Sérgio Cabral, Marina Lima, Elton Medeiros, entre outros. Elton Medeiros faz milagres com uma caixinha de fósforo. Toca muito mais do que muitas bandas completas juntas. Meu Tempo é Hoje também relembra, em imagens preciosas, Pixinguinha, Cartola, Noel Rosa e Jacob do Bandolim. A notória timidez de Paulinho é pouco notada. À vontade, ele nos apresenta a seus amigos de sinuca, a sua família. Fala de seus carros antigos que, ele mesmo, há de reformar. A pequena marcenaria é o xodó. A intimidade é tanta, que em alguns momentos você esquece que está no cinema e chega a se sentir na sala de estar de Paulinho. Você precisa se conter para não levantar a voz e fazer algum pergunta pra ele. É como se ele estivesse na sua frente. E está. Um exemplo vivo disso acontece quando, no aniversário de Paulinho, mulher e filhos estão sentados na sala, revelando manias esquisitas do homem. Como a vontade inesgotável de consertar tudo que encontra pela frente. É o gênio com jeito de homem comum. A direção primorosa de Izabel comove. Ela capta as emoções instantâneas, os planos mais profundos. Mostra as cores do samba, as cores do Rio de Janeiro. O azul da Portela, o terno branco em silenciosa contraposição. Não há espaços vazios no filme. "Só no cinema", como diz Zeca Pagodinho durante um samba na sua casa, em Xerém. Só no cinema. Cinema. Pelas mãos geniais de Paulinho da Viola, pela suavidade de seu ser, pela música espetacular, pela câmera de Izabel, Meu Tempo é Hoje é cinema, como não se vê há tempos. É cinema de verdade. Te faz sentir saudades, mesmo que Paulinho da Viola não aprove isso. O melhor filme de música já feito em terras brasileiras. Nota do Editor Texto originalmente publicado no recém-inaugurado site Laboratório Pop. (Reproduzido aqui com a devida autorização do autor.) Para ir além Alexandre Petillo |
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