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Segunda-feira, 5/4/2004
A Paixão de Cristo e Cidade de Deus
Marcos Procópio

Depois do polêmico lançamento do filme americano A Paixão de Cristo, dirigido pelo já bem consagrado ator de filmes de ação (e violência) Mel Gibson, muitos comentários sobre o teor e conteúdo desta obra vêem surgindo entre aqueles que o assistiram.

Via de regra o filme parece não ter obtido uma boa repercussão. Parte significativa dos comentários repousa sobre o argumento de que o filme é superficial, relata de forma incompleta e parcial apenas a trajetória final de Cristo na terra e, principalmente, "apela" deliberadamente para inúmeras cenas de violência explícita, que incluem humilhação, tortura e mutilação do corpo do seu protagonista.

Entretanto, depois do "banho de sangue" que acompanha a sessão de cinema, este filme nos convida à uma reflexão mais profunda. Interpretá-lo como um jogo de "clichês bíblicos" ou simplesmente como mais um filme "apelativo", preocupado com o ganho de bilheteria a partir da exploração da violência, está longe de ser um ponto de vista inválido. Porém, por onde tem passado, o filme vem trazendo muito mal estar e, quem poderia imaginar, até a morte de alguns dos seus expectadores. E é justamente por ter esta capacidade de chocar, e até matar, seus expectadores que o filme merece uma atenção maior na sua leitura.

Todos sabemos que filmes de violência explícita existem aos montes no cinema mundial e principalmente no cinema americano. Entretanto, entre obras de ficção científica, filmes policiais e filmes de "gangsters", a violência encontra-se banalizada a tal ponto que dificilmente choca profundamente o espectador. O mal estar trazido por esses inúmeros filmes nem se compara àquela trazido pela A Paixão de Cristo. Por quê? Eis aqui a grande questão. Talvez a própria banalização da violência nas telas seja a resposta. Entretanto, por sua parte, a violência praticada contra Cristo na A Paixão de Cristo choca e até mata; ou seja, está muito longe de ser vista simplesmente como banal.

Expondo uma versão não tão desconhecida (ao menos para os cristãos) sobre as horas finais da vida de Cristo na terra, o filme pode ser também interpretado como um "tapa na cara" daqueles que, embebidos em hipocrisia, riem e se divertem com cenas de violência em outros filmes, onde os protagonistas são "pagãos", mas se estremecem diante da violência praticada contra o "filho do Senhor". E nossos mortais? Podem ser violentados livremente nos cinemas, na TV e na vida real? Será que o sofrimento de Cristo não se estende ao sofrimento de outros protagonistas menos "sacralizados" de outros filmes, como aqueles da Cidade de Deus, tão ou mais humilhados quanto ele? Porque ver Cristo ser violentado é mais inaceitável e dói mais do que ver crianças pobres e negras sendo violentadas e assassinadas? Será que é porque elas não são filhas de Deus? Ou será que é porque elas merecem mesmo esse tratamento já que são todas criminosos em potencial e se tornarão grandes assassinos sanguinários no futuro breve?

De forma deliberada ou não, talvez seja esta a maior mensagem oferecida pelo filme A Paixão de Cristo: desmistificar a hipocrisia do expectador que, ao mesmo tempo que permite que cenas de violência explícita sejam motivos de riso e puro entretenimento, reage de modo acrítico à violência praticada contra o símbolo sagrado do cristianismo.

Não é necessariamente preciso ser um grande cristão para saber que a vida de Cristo simbolizou a vida dos homens (mortais) e que o seu sofrimento, retratado com maior ou menor fidelidade no filme de Gibson, é uma lição rumo ao amor, respeito e a tolerância entre as pessoas.

Enquanto Gibson humilha, violenta e mutila Cristo em seu filme, de forma definitivamente chocante e até mesmo letal para alguns expectadores, qual seria o valor da vida de todos os outros "filhos de Deus" que sofrem e morrem violentamente em outros filmes, na televisão e principalmente na vida real? Talvez, crucificar Cristo de forma tão violenta e selvagem seja realmente necessário para mostrar aos expectadores o quão longe do ideal bíblico de um mundo melhor nós nos encontramos, devido a banalização da violência cometida contra nossos próprios "irmãos".

Marcos Procópio
Salvador, 5/4/2004

 

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