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Quinta-feira, 15/4/2004
De Livros, Leitores e Leituras
Ricardo de Mattos

"Ler é ver que as coisas são menos simples e mais interessantes do que parecem". (Daniel Piza)

Em 1.513, Machiavel estava recolhido n'uma villa nos arredores de Florença. Escreveu uma carta ao embaixador Francesco Vettori a quem secretariava, contando sobre seu cotidiano. Ao levantar de manhã, a primeira actividade consistia em supervisionar a extração de madeira n'um bosque de sua propriedade, tarefa nem sempre pacífica devido às constantes discussões com lenhadores e vizinhos. Em seguida, encaminhava-se para uma fonte e d'ela para a caça de tordos. No meio das árvores e aguardando a caça, portava sempre um livro de Dante, Petrarca - outro notório apreciador de leituras em meio à Natureza - ou "um d'estes poetas menores, como Tíbulo, Ovídio e semelhantes".

Após a caça, dirige-se para uma hospedaria de beira de estrada para conversar com os viajantes e interrogá-los acerca das novidades. Vai para casa fazer uma refeição, mas torna à hospedaria para jogar baralho e envolver-se em discussões. Diz-se envergonhado, porém mal disfarça o gosto em permanecer n'esta baderna. No começo da noite, volta para casa e dirige-se ao escritório, à porta do qual troca a roupa diária por um traje de cerimónia e, vestido com decoro, entra "na antiga convivência dos homens do passado". Diz o florentino: "Não me causa vergonha falar com eles, e lhes indago das razões de suas acções e eles humanamente me respondem...". E quatro horas diárias são dedicadas ao convívio.

Virgínia Woolf, 413 anos mais tarde, escreveu um saboroso ensaio sobre a relação do leitor com os livros. Como Se Deveria Ler Um Livro? foi publicado em outubro de 1.926 na Yale Review e com alterações no volume The Second Common Reader, do qual foi tirado o fac-símile reproduzido nas páginas 06/18 da Revista Bibliográfica & Cultural. Ignoro se a escritora teve acesso à carta de Machiavel - é provável que sim. Independente d'isso, ambos convergem na busca da leitura de qualidade, saudável, que permita ao leitor ligar-se a outras épocas e lugares. Realmente, só quem muito lê sabe que os termos da equação [livro+leitor+leitura] nem sempre apresentam a combinação esperada. Entretanto, quanta satisfação com um bom resultado!

A leitura exige primeiro o recolhimento e em seguida o ato oposto de libertação. O leitor recolhe-se em si, esteja onde estiver, e liberta o espírito para bom cumprimento da tarefa. Afirma Woolf ser a leitura a busca d'um profundo e sábio prazer, melhorada com o afastamento de idéias pré-concebidas, entendendo-as como os preconceitos do leitor. Creio não fazer mal em acrescentar a elas os estereótipos. Afirma também que a boa leitura é resultante da seqüência de dois processos. O primeiro é a recepção das impressões com o máximo de atenção. O segundo, a comparação. N'este, sugere que se compare o livro recém encerrado ao maior de sua espécie. A pista vem no começo do texto: por que Rei Lear é melhor ou pior que Hamlet? A comparação não é algo simples, e ao menos para mim não é a finalidade primordial. Entre um processo e outro, a escritora recomenda conversas, caminhadas e até cochilos. Justifica o intervalo como necessário para que o livro que afundou em nosso espírito volte à tona e permita o início da segunda etapa.

A escritora afirma: "Admitir em nossas bibliotecas autoridades, por mais sólidas e reconhecidas que sejam, e deixar que nos digam como ler, o que ler, que importância dar ao que lemos - é destruir o espírito de liberdade, que é a alma desses santuários". Para ela, o melhor conselheiro é aquele a sugerir total independência de leitura. Depois de realizados o primeiro e o segundo processos, ela concorda com o chamamento de alguns críticos não para pontificarem sobre o lido, mas para auxiliarem-nos a esclarecer e organizar o que se encontra difuso em nossa mente. Alguns textos do volume Reflexões Sobre o Exílio, de Edward Said, só devem ser lidos após a leitura da obra a que se referem apenas para não influenciar o leitor. Em alguns casos, eles provocam uma nova leitura, como no caso da Ciência Nova, de Vicco. Sempre sem medo, com independência e ilustração de espírito.

A autora de Orlando aborda poesia, romance, biografia e selecções de cartas. Estes dois últimos gêneros seriam úteis para lançar luzes sobre a pessoa que escreveu a obra com q qual nos deleitamos. O nome que acompanha o título é ligado a um homem ou mulher, com seus hábitos, gostos e leituras. Tais dados seriam úteis para o trabalho intelectual do leitor, habilitando-o a responder até que ponto a vida privada do autor influi sobre seus livros. Walter Scott, por exemplo, perdeu fortunas e gerou grandes débitos com o mau emprego do dinheiro ganho com seus livros. Houve época que precisou trabalhar freneticamente para pagar dívidas. Se Ivanhoé nasceu n'esta fase conturbada, o talento do escritor é realçado, pois escreveu às pressas um romance que muitos não escreveriam com décadas de sossego e comodidade. Bem resumido, ela aconselha a mesma conversa que Machiavel mantinha com os antigos.

Mesmo que o volume não contenha uma obra prima da literatura, ele pode satisfazer-nos. Devemos reparar na miscelânea de ideias, países e épocas que se amontoam nas prateleiras da biblioteca. Uma estante de livros muitas vezes é uma apologia silenciosa à Variedade, uma das sacerdotisas de Minerva. Dispensa-se uma reunião proposital. Juntando os livros que comecei a ler e ainda não terminei, justamente para encerrá-los, viajo da Florença de Maquiavel para a França de Roger Chartier e de Rousseau; venho para a cidade de Silveiras e d'ela para a capital do Estado, onde escreveu Mário de Andrade e passo para a província vizinha na qual encontro José Ramos Tinhorão. Retorno à Europa através do Vaticano, intermediado pela Fides et Ratio, aproveitando para perambular pela Suíça e pelo mundo germânico de Paul Klee e Thomas de Kempis.

Um dos melhores portos foi o britânico. Sempre fui muito bem recebido pelos meus cicerones: Walter Scott e David Hume na Escócia; Dylan Thomas no País de Gales; Swift na Irlanda e Jane Austen na Inglaterra. São muitos outros os anfitriões: Virgínia Woolf, George Orwell, William Golding, Daniel Defoe, Lord Lytton, Ian Mc Ewan, Oscar Wilde, Henry Fielding, Charles Dickens, Emily Brontë, Edna O'Brien. Thomas Edward e David Herbert Lawrence. Stevenson, Hobbes, Guilherme de Ockham, Roger Bacon, Thomas Morus, Locke, Norman Angel, Edward Carr. Recentemente, William Somerset Maugham e Evelyn Waugh.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 15/4/2004

 

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