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Quarta-feira, 12/5/2004 Tempo de aspargos Daniela Sandler As cidades, como as pessoas, transformam-se com as estações. Em Berlim esse lugar-comum ganha vida fresca: pode ser clichê, mas é verdade, que salta na cara e faz parte da natureza mutante da cidade. Durante o inverno longo, quando anoitece às três da tarde e o vento se enfia por todas as frestas do casaco, os berlinenses percorrem sisudos as ruas geladas. Sobrecenho amarrado sob o cachecol, silêncio no vagão do metrô. O céu é cinza-escuro quase todo dia, não há luz que baste para avivar a cor dos edifícios e monumentos, que parecem todos cinza também. Mas no primeiro dia mais longo de céu azul pálido e ar quase morno os berlinenses abrandam o passo, deixando-se ficar na grama puída dos parques e praças, e nas mesas ao ar-livre que os muitos cafés esparramam nas calçadas. Somem os sobretudos negros e as testas franzidas: em seu lugar, a cor das roupas leves e o som de conversas animadas em que até sorrisos escapam. Os berlinenses, vale dizer, desconfiam do sorriso. Julgam ser falso estampar no rosto um riso gratuito, fingimento de amizade ou alegria. Talvez o inverno lhes embote os sentidos, e não lhes ocorre que é possível ser alegre ou amigável sem motivo, ou por natureza. Alemães de outras paragens dizem também que os berlinenses não têm senso de humor – não entendem ironias, não se entregam a gargalhadas, e suas próprias piadas são ininteligíveis. Em todo caso, passam boa parte do ano cultivando a expressão séria e trombuda que, junto às roupas pretas, é marca registrada do berlinense “cool”. Quando em abril vem a primavera, tudo isso se derrete, ao menos nas primeiras semanas em que o prazer de estar ao ar livre parece recém-descoberto, depois de tanto tempo frio. Sem aviso, de um dia para o outro, os galhos nus das árvores desfolhadas – que durante cinco meses pontuam a paisagem como esqueletos cinzentos – se enchem de botões. Logo as flores se abrem em profusão, e a cidade se enche de árvores brancas, azuis, cor-de-rosa, roxas, amarelas, cheias como nuvens. O perfume é tão intenso que se distingue mesmo no meio da fumaça dos carros. Em todo lugar há cantos de passarinhos, cantos diferentes, quem diria haver tanto pássaro numa grande cidade? As vistas conhecidas se transformam, agora sombreadas ou interrompidas pela fronde verde das árvores. A primavera permeia todos os sentidos, incluindo o paladar. Com abril começa a esperada estação de morangos, cerejas, aspargos. A mania alemã por aspargos é tão grande que há até um nome para esta época: Spargelzeit, ou tempo de aspargos. Não só as feiras e mercados exibem os vegetais, mas também restaurantes e cafés de todo calibre festejam os aspargos no menu. De sobremesa igualmente sasonal, morangos – com creme, em crepes, ou numa espécie de sopa doce feita com outras frutas vermelhas e chamada Rote Grütze. Essa “orgia” de frutas e legumes dura até o meio de junho, quando a estação acaba. Não se celebram aspargos nem antes, nem depois. O respeito à estação apropriada não se estende, no entanto, a outros vegetais: durante o ano inteiro encontram-se bananas, laranjas, abacaxis, kiwis, até mesmo papaias junto às maçãs e peras européias. Quando às vezes há uma caixa de morangos ou rama de aspargos, estão escondidas num canto, envergonhadas – os caules murchos e desbotados, esquecidos na prateleira, que ninguém compra aspargo em dezembro. Fora de época, só os talos afogados e insossos dos aspargos em conserva. É como se os prazeres da primavera fossem reservados para o seu tempo definido – tanto o perfume de uma taça de morangos como as flores das árvores, que logo irão cair e dar lugar a copas verdes. Chegando julho, a alegria de um dia tépido esmorece, perdida a novidade. Mas, nos três meses entre inverno e verão, Berlim floresce, viva e sorridente, a cada vez como se fosse a primeira. Daniela Sandler |
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