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Segunda-feira, 10/5/2004
De Passagem e o olhar contemplativo pela periferia
Lucas Rodrigues Pires

De Passagem, filme de Ricardo Elias, poderia ser apresentado como a versão paulista e atual de Rio 40 Graus, o clássico de Nelson Pereira dos Santos. O filme é o reencontro de dois amigos negros, um envolvido com o tráfico de drogas e o outro cadete da escola militar carioca, num ambiente conhecido nacional - a periferia paulistana. Apesar de se voltar a esse cenário tão visitado ultimamente e em moda no cinema brasileiro, Elias realizou um filme que é o oposto do que se vê quando esses marginais sociais são retratados. De Passagem não mostra violência, não tem trilha sonora de rap ou hip hop, não exibe armas, tiros ou drogas e não apresenta um antagonista físico. Pelo contrário, é um filme reflexivo, contemplativo, intimista, que retrata um retorno à infância dos protagonistas com delicadeza e sutileza, o que o transforma num belo exemplar de filme que retrata uma realidade dura (a vida na periferia) de forma amena e sentimental.

O filme começa com um fim de tarde, quando vemos a silhueta de dois garotos jogando bola e um terceiro a cantar. A câmera é fixa, o garoto cantor está parado e só vemos os outros dois a correr atrás da bola. A cena se alonga até o fim da canção, de forma que já de início temos uma característica do que se verá adiante - planos longos, contemplativos, que nos abrem para refletir e questionar sobre a história. Pois bem, aí temos a apresentação dos personagens - Washington, Kennedy e Jefferson. Logo saberemos que aquela cena é o passado, quando eram crianças, e que o tempo da narrativa se passa aproximadamente dez anos depois, quando Jefferson volta para casa após receber a notícia de que o irmão Washington havia sido assassinado. Temos a ambientação da família e descobrimos que o morto estava envolvido com o tráfico de drogas e que Kennedy continuara seu amigo desde o tempo dos campinhos.

De Passagem se passa durante esse dia, quando os dois amigos, que não têm mais a cumplicidade de outrora, saem de casa numa peregrinação para encontrar e reconhecer o corpo do amigo e irmão. É durante a viagem que atravessa toda São Paulo, de uma periferia a outra, que esses dois seres, amigos e ao mesmo tempo desconhecidos, irão conviver, exteriorizar lembranças da infância (numa narrativa paralela que segue o mesmo trajeto da presente) que, na verdade, servirá como um rito de passagem para a vida adulta. O tema do rito de passagem é clássico no cinema e De Passagem explora essa passagem de várias formas. Jefferson e Kennedy irão pegar ônibus, trem e metrô em busca do irmão, convivendo e reconhecendo aquela realidade de forma melancólica (afinal, o irmão havia morrido e ele era, de certa forma, o elo de ligação entre ambos), mas também de amadurecimento. A imagem do trem em movimento, constante no filme, traz à tona essa idéia de movimento, passagem, transitoriedade, transformação. Antes e depois serão momentos distintos na vida desses dois jovens, e a viagem de trem marcará pela exorcização de um fantasma que rondava os jovens desde a infância.

Como já dito anteriormente, a câmera de Ricardo Elias, um jovem de 35 anos estreante no longa-metragem, é generosa, contemplativa, abre espaço para o interior dos personagens sem se apoiar em efeitos, dramaticidade gratuita ou trilha sonora comovente. Essa opção por uma forma considerada lenta comparada a outros filmes similares possibilitou belos planos-seqüências, seja dentro do ônibus, da periferia ou da emoção dos personagens. Um deles é tocante ao extremo: após ver o corpo do irmão, Jefferson espera que o amigo faça o reconhecimento. Elias prende-se em seu rosto em close, como se ali tivesse esquecido a câmera. À medida que o tempo passa (são longos segundos) vemos a expressão de Jefferson se humanizar, seus olhos se umedecerem. Essa cena é emblemática não apenas pela beleza do seu conteúdo imagético, mas também por nos levar a se emocionar junto a ele sem o artifício do som (trilha). É o momento de transformação interna do personagem, pois até aquele instante ele exibia uma postura rígida, um tanto insensível, digna de sua educação militar. Consciente ou não, Elias definiu claramente essa mudança, a catarse interna do protagonista, que se mostrava fechado às investidas do amigo por crer que este ainda estava envolvido com o tráfico.

No tocante à estrutura, De Passagem apresenta dois tempos distintos que se misturam. Um episódio da infância envolvendo os três garotos - uma entrega de um traficante vizinho - delimita a personalidade de cada um. Essa narrativa com as crianças invoca os meninos de Rio 40 Graus, de Nelson Pereira dos Santos, que descem do morro para o centro da cidade para vender amendoim e se envolvem em pequenas tramas. Em De Passagem, tal ação é narrada paralelamente ao tempo presente, ou seja, quando os dois jovens partem em busca do cadáver do terceiro para poder fazer o enterro. Mas, se olharmos bem, veremos que passado e presente estão fundidos num tempo só. Jefferson e Kennedy carregam em si aquele tempo de infância - um pelo fantasma que o episódio lhe gerou, outro por ter sido um tempo feliz que não volta mais, "o melhor de minha vida", nas palavras de Kennedy - e o revivem como uma forma de resgatar aquela inocência, recuperar algo perdido. Unindo tempo e espaço, Elias não só fez os personagens reviverem aquele episódio da infância no espaço, como também na mente. Essa interação possibilitou a fusão de tempos e de imagens, o que transformou ambas as experiências em uma única e, para os protagonistas, foi uma segunda chance de redenção.

A periferia surge como cenário de saída e chegada. É dela que saem Jefferson e Kennedy em busca do corpo de Washington e é nela que eles terminam. É na periferia que De Passagem começa - os garotos jogam bola e um está a cantar - e é nela que o filme termina. A periferia como espaço de crimes sim, mas também como o espaço onde as amizades florescem e permanecem, desde a infância até o anoitecer.

Lucas Rodrigues Pires
São Paulo, 10/5/2004

 

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