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Sexta-feira, 21/5/2004
Como mudar a sua vida
Eduardo Carvalho

Quando, em abril de 2000, fui conversar com um professor de Estética da USP, depois de uma aula sobre Renascimento, eu disse que, além de História, estudava também Administração de Empresas. Ele apontou para o ventilador da sala, e não me esqueço: comentou que minha cabeça devia estar rodando com mais velocidade do que aquelas hélices. Não entendo, até hoje, essa separação que inventaram entre o ambiente empresarial e o - não gosto da expressão - cultural. Não fazia sentido, para mim, na época. E hoje ainda considero um enorme absurdo. É na intersecção de assuntos em que se escondem pensamentos inéditos. Historiadores precisam também estudar finanças. É um exercício saudável: areja o cérebro, que às vezes está, durante anos, trancado num departamento mofado.

É que, de vez em quando, o historiador comete o mesmo equívoco do gerente de área de contabilidade: e começa a achar que o mundo circula em torno dos seus balanços. A briga mais estúpida do mundo é a mais normal dentro de grandes empresas: a disputa entre o "pessoal da Contabilidade" e "o pessoal do Financeiro". O historiador, quando considera o seu assunto o mais importante - a ponto de incapacitá-lo de entender outros -, se comporta como um contador emburrado. A origem dessa competição entre departamentos, em empresas, e entre assuntos, fora delas, é que esse "pessoal" - que almoça com crachá no bolso para anunciar que tem emprego, ou conversa apenas com os "companheiros de profissão" - está condenado a viver a vida dentro da organização em que trabalha, preso a um assunto específico; por isso precisa se convencer de que o "seu departamento" é o mais importante da corporação, ou o seu assunto o mais importante do mundo. São funcionários que reduzem, voluntariamente, todas as infinitas possibilidades para se aproveitar a vida a uma inútil competição entre departamentos. É uma modalidade sutil de suicídio espiritual - que inclusive auto-intitulados humanistas praticam com insistente freqüência.

Quando, então, um professor da escola - ou mesmo da faculdade - recomenda que um aluno curse Filosofia, porque tem "preocupações humanísticas", comete um erro desde o início do seu raciocínio: achando que apenas algumas pessoas têm, ou deveriam ter, essas esquisitas preocupações, e que todas elas deveriam estudar História, Letras, Filosofia, ou alguma coisa do gênero. Separando artificialmente, assim, esse indivíduo dos que "pensam apenas em dinheiro", e preferem estudar economia ou administração. É nesse momento que a ignorância assumida começa a se desenvolver: quando, orientado por um profissional, o adolescente inseguro dispensa quase todas as áreas do conhecimento para se concentrar na atividade que o remunerará. Ou então, iludido de que um curso de Filosofia expandirá o seu espírito, matricula-se numa faculdade fraca, lê livros confusos, se considera sabichão, e depois passa a vida sugando o Estado - porque acha que sua ilegível produção intelectual terá algum interesse prático ao resto da humanidade.

Tem gente que ainda encontra incoerência entre o interesse artístico e a vocação empresarial. Essa distinção precisa acabar. E de ambos os lados: intelectuais, ou quem assim se considera, devem respeitar mais o trabalho de aplicabilidade prática, como a administração de fazendas e a análise de ações de empresas; e também empresários e empregados de setores mais operacionais deveriam se aproximar mais dos livros - em vez de desprezá-los, considerando a leitura e a literatura atividades apenas "improdutivas".

Essa segmentação entre gente que trabalha em empresas - com vocação administrativa - e os que preferem assuntos humanísticos - e se afundam nos livros é mais comum em países subdesenvolvidos, com economias menos eficientes. Onde o executivo esforçado é confundido com um picareta qualquer, porque muita gente, há muito tempo, ganha dinheiro esfolando o Estado. É preciso, portanto, esclarecer um ponto elementar: o empreendedor - que transforma sua idéia em produto, e depois em empresa - é, por definição, inimigo do Estado, que aparece apenas para lhe exigir tributos. Novas idéias de serviços e produtos são resultados exclusivos da imaginação pessoal - mesmo que, em seguida, tenham sido desenvolvidas por um grupo.

Transformar idéias soltas em resultado financeiro não é fácil. E não é tampouco uma tarefa mecânica e monótona, como querem aqueles estudantes e cronistas que, achando que estudam ou praticam literatura, consideram o "mundo empresarial chato" - cheio de gráficos e planilhas incompreensíveis. Não é. O capitalismo proporciona um ambiente muito excitante a quem sabe aproveitá-lo. E isso pode ser incompatível com a preguiça cerebral de quem prefere, da periferia, apenas criticá-lo.

Diários de motocicleta

Ernesto Che Guevara viajou, por quatro meses, pela América Latina, e Walter Salles agora resolveu filmar o que Che registrou em seu diário. Diários de motocicleta poderia ser um filme sobre qualquer estudante curioso, que durante a faculdade decide conhecer de perto o seu - ou outro - país. Mas por acaso é de Che Guevara - que mais tarde se transformou num ídolo de gerações, inspirando a juventude que busca, desorientada, um mundo melhor.

Che Guevara representa, há décadas, os ideais de quem sonha por um planeta mais honesto. O que não significa necessariamente que ele tenha sido uma pessoa honesta. Seu símbolo não expressa o seu conteúdo. Guevara, no filme, é um sujeito simpático, que só consegue falar a verdade, incapaz de dizer pequenas mentiras. Mas isso não pode compensar os seus defeitos: Guevara foi, mais velho, um metralhador descontrolado, que estourava miolos antes de conversar com quem discordava. Se convenceu, ingenuamente, de que uma ideologia fraca poderia salvar o mundo; e assim justificou as barbaridades que cometeu. Foi usado por líderes totalitários, como Fidel Castro, e - para ficarmos na Revolução Cubana - colaborou com o desaparecimento de Camilo Cienfuegos, o, digamos assim, mais democrático líder da Revolução.

Eu fiz uma viagem, aos 20 anos, com um amigo, atravessando o Brasil e contornando o litoral de carro. Foi apenas por um país, mas, com mais de 10 mil quilômetros rodados, foi ainda mais longa do que a de Che. Reconheço que não era assim tão desinformado quanto Guevara, quando iniciou sua viagem; eu já havia, antes, feito viagens mais curtas, e entrado em contato natural com a pobreza brasileira. Concluí que alguma coisa precisa ser feita. Que a população precisa, com urgência, ser mais educada, em todos os sentidos. Mas não é o comunismo que salvará a América Latina. Che Guevara, no filme, de passagem, comenta que precisamos aprender com os russos; aprender o quê? Seria um desencanto, para o Guevara de atual, visitar hoje Nizhni Novgorod.

O filme da Walter Salles - Diários de motocicleta - não pretende ser uma biografia de Guevara. É apenas uma bonita seleção de suas memórias, em um momento específico de sua vida. Poderia ser baseado na vida de quase qualquer estudante. Acontece, porém, que a divulgação de Guevara assim, tímido e de bom coração, reforça uma imagem distorcida de quem ele realmente foi. E incentiva novas gerações - se as passadas já não bastam - a se apaixonarem por uma figura medíocre.

Como mudar a sua vida

Tenho lido, ultimamente, Alain de Botton, de quem já recomendei A arte de viajar, um texto delicioso para quem gosta de circular pelo mundo. Li agora Como Proust pode mudar a sua vida - e, entusiasmado, confesso: é o melhor livro de auto-ajuda que já li. Eu li a adaptação de Proust para os quadrinhos, de Stéphane Heuet, e vi o filme O tempo redescoberto, de Raul Ruiz; faltava agora, para completar o ciclo, ler o livro de Botton.

Proust é - ou poderia ser - uma figura literária intocável. Foi ele quem elevou a arte ao extremo, e mostrou o que é, no limite, e para que serve a literatura. Dificilmente alguém conseguiu ser tão pessoal e, ao mesmo tempo, tão universal. Proust mergulhou num mundo exclusivo e limitado: e tirou dele observações incríveis, mapeando praticamente todas as sensações humanas. E construiu assim a sua "catedral literária". Proust é sagrado. É por isso que todas as referências à sua obra soam banais.

O que não significa que elas sejam. O livro de Botton, aliás, é sobre Proust, mas poderia ser mais extenso: e se chamar Como a literatura pode mudar a sua vida. Porque pode.

Para ir além





Eduardo Carvalho
São Paulo, 21/5/2004

 

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