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Segunda-feira, 24/5/2004 Fragmentação e linearidade em Benjamim Lucas Rodrigues Pires A literatura de Chico Buarque é um risco tremendo para aqueles que a queiram levar aos cinemas. Senhor de um estilo único em uma prosa marcada pela fragmentação da narrativa unida a situações nada usuais, paradoxalmente, seus romances estão todos indo diretamente parar nas telas de cinema. Primeiro foi Estorvo pelas mãos de Ruy Guerra. Agora chegou Benjamim, adaptado por Monique Gardenberg. Benjamim é um filme de ritmo linear dentro de uma narrativa fragmentada. Não apresenta surpresas, suspenses, oscilações de emoções ou imagens. Ele se mostra reto, sem alternar bons e maus momentos. Talvez por isso ele exerça um efeito retardado no espectador. Você sai da exibição e não sabe dizer concretamente o que achou, pois nada te chamou muito a atenção. Mas, depois, com calma, suas imagens vão se assentando e um “Benjamin ressuscitado” entoa suas qualidades. Como dito anteriormente, adaptar Chico Buarque é um risco extremo. Primeiro, porque sua literatura tem um viés kafkiano e surreal, portanto, antinaturalista (lembremos que o cinema convencional é uma representação naturalista, realista, apesar de grandes diretores trabalharem no campo da figurativização, no campo do alegórico). Segundo: como levar Chico dignamente ao cinema depois de Ruy Guerra ter adaptado magistralmente Estorvo (muitos dizem que o filme é melhor que o livro) sem cair na “cópia” (a não originalidade) ou na mudança brusca e sem razão, que o distanciaria do universo do autor? Monique Gardenberg bancou o risco. O resultado fugiu do experimentalismo subjetivo que foi Estorvo para se prender e ressaltar a narrativa fragmentária de Benjamim. Se no primeiro a narrativa era afetada pela mente dilacerada do personagem, em Benjamin ela recupera o fluxo de consciência (e pensamento) do personagem-título (vivido por Paulo José), sua memória e suas obsessões para dar unidade à história. Benjamim, ator em decadência nos anos 90, vive com a culpa pela morte de sua antiga namorada nos anos 60, Castrana Beatriz, assassinada pela ditadura devido a um erro seu. Quando, num instante num bar, ele vê a bela Ariela Masé, tem a certeza que esta é a filha desaparecida daquela e vai buscar, assim, uma forma de redenção para suas culpas. Tal cena é lírica e tem um tom de nostalgia porque vemos Benjamin a observar o cigarro e a boca de Ariela e não ela em si. O cigarro manchado de batom no banheiro masculino será o desencadeador do flash-back do filme, do resgate da memória de Benjamim e o início de sua morte, já anunciada na cena de abertura. Essa hibridização entre memória, fantasia e realidade dá a tonalidade da obra. A trama está dividida em três tempos, distintos pela fotografia (não por acaso, feita por Marcelo Durst, o mesmo fotógrafo de Estorvo): o tempo da juventude, anos 60, de luta e perseguição política, retratado como memória, recebe tratamento diferenciado, numa fotografia mais colorida, voltada ao rosa, que lembra uma atmosfera onírica. Além deste, há o tempo intermediário, nem o passado juvenil, nem o presente da narrativa. Esse tempo, na verdade, restringe-se a Ariela e sua trajetória de vida, como conheceu o marido e começou a trabalhar na imobiliária do tio deste. Essa história é necessária porque nela estão relacionadas as explicações que a trama exige para a compreensão do tempo presente. Essas oscilações temporais refletem bem o livro de Chico Buarque. Sem elas, livro nem filme teriam a força que têm, pois é a montagem mental do espectador que gera o impacto e não o contrário. Assim, quem assiste ao filme tem a sensação de ter montado o quebra-cabeça, ter decifrado a fragmentação da forma proposta. E, para quem vê, isso é gratificante. Tal proposta de imbricação temporal é uma das formas em voga hoje e que exprime a crise que vive a narrativa clássica tradicional. Nesse sentido, Chico Buarque é um autor da crise da modernidade, e o cinema derivado dele também. Mas se Chico aponta para essa crise das formas narrativas literárias, tal fator serve também para reforçar a crise subjetiva do homem, interna ao personagem, a ponto de proclamar segundos antes da morte que “este é o dia mais feliz de minha vida”. Por outro lado, de tanto ir e vir, o filme acaba por ter alguns momentos mortos, que poderiam ter sido cortados ou minimizados. Momento alongado além do necessário, por exemplo, é o de Benjamim a relembrar Castrana pelas fotos publicitárias que fizeram quando jovens. Um plano único que busca explorar a angústia da culpa e da saudade pela expressão de Paulo José e pela música “Ne Me Quitte Pas”, imortalizada no cinema por Almodóvar. A cena se estende ao compasso da música, só tendo um fim quando finda esta. As imagens de Gardenberg demonstram certa preocupação estética. Primeiros planos não são freqüentes, privilegiando os travellings verticais e os plongeés. Além disso, a fixação da câmera pelo corpo de Ariela Masé (Cléo Pires, o grande achado do filme) imprime a sensação de voyeurismo. A câmera parece lamber o corpo dela, sempre buscando as partes descobertas pelas roupas - um decote, parte das coxas bem torneados e morenas etc. A beleza da moça é o fator gerador do conflito e o conseqüente clímax da obra. Consciente disso, o espectador vive uma relação próxima com ela, quase carnal, que relembra sempre que a mulher é prazer mas também perdição (não no sentido machista da coisa). É assim para todos aqueles que se relacionam com Ariela, mesmo para o pacato Benjamim Zambraia. Paulo José foi outra escolha feliz. Um personagem decadente, ingênuo em certo ponto, combina com o jeito passivo do ator. Benjamim tem um toque quixotesco, tal qual Policarpo Quaresma, personagem da literatura de Lima Barreto também representado por ele nos cinemas. Num primeiro momento, Benjamim parece tropeçar num atropelamento de tempos e turbilhão de fatos, típicos de Chico Buarque. Mas, posteriormente, assentada a fumaça, sente-se sua força e se enxerga uma obra madura, com alguns equívocos sim, mas também com escolhas adequadas. Monique Gardenberg superou o risco. Lucas Rodrigues Pires |
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