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Sexta-feira, 4/6/2004 Prazeres escondidos Eduardo Carvalho Acrescentei à minha biblioteca, nas duas últimas semanas, mais de quarenta novos volumes. É que a livraria ao lado do escritório em que trabalho, no Itaim, está liquidando, porque passará a vender livros de apenas uma editora. Nem todos esses volumes, é verdade, podem ser assim considerados livros. Alguns são relíquias curiosas, como lista de sites para navegar pela Internet de 1996, guias que não pretendo usar em breve, como New Zeland By Bike, e manuais interessantes, como Medical Botany. Mas selecionei também muita coisa boa e útil: como livros difíceis de encontrar, outros que eu enrolava para comprar, ou mesmo algumas raridades das quais nunca tinha ouvido falar. Trinta volumes, pelo menos, então, podemos considerar livros. Como a antologia de ensaios de Saul Bellow, Tudo faz sentido, que merece uma edição revista e melhor traduzida, mas que contém ensaios sobre assuntos variados como Mozart, um inverno em Toscana e civilização. Saul Bellow é dos poucos escritores vivos que ainda acreditam em literatura. Comprei uma seleção de contos sua, Trocando os pés pelas mãos - Bellow, como um bom escritor americano, sabe escrever contos. Levei também, de tabela, Ravelstein, em que Bellow disseca a personalidade de seu amigo Allan Bloom - dono de uma erudição e de um apartamento fenomenais, foi uma das figuras mais interessantes e influentes no debate de idéias norte-americano. Outro personagem curioso - para além de sua música - foi Stravinsky, que conviveu com Huxley, Eliot, Auden, Christopher Wood, e quem mais, em sua época, tivesse alguma expressão artística. Seu assistente pessoal, Robert Craft, maestro e crítico de música, escreveu esse Stravinsky - Crônica de uma amizade, resultado do diário que manteve durante mais de 20 anos de relacionamento com o compositor. Os dois circulam de Moscou à California, atravessando o mundo diversas vezes, mas Stravinsky, compreensivelmente, amou Veneza acima de todas as outras cidades - e lá foi enterrado. Como vários espíritos cosmopolitas, Stravinsky foi apaixonado pelo ambiente de Veneza: que, num espaço relativamente pequeno, resume o que é viver civilizadamente: o contato com a água, com o passado, com as artes - e quase todas as obrigações cumpridas de barco ou a pé. A biografia de Edmund Wilson por Jeffery Meyers parece - ainda não li inteira - competente, com um texto rápido e muitos detalhes pessoais da vida de Wilson. Mas a editora Civilização Brasileira poderia ter escolhido alguém mais preparado para escrever a orelha - e não Fausto Wolf, que ainda reclama da "banalização da mídia" e do "conformismo que tomou conta dos leitores nos últimos vinte anos". Quando foi melhor? Comprei também, de Christopher Sawyer-Lauçanno, Escritores americanos em Paris, do qual Wolf provavelmente também adoraria assinar a orelha - mas não assinou. Gertrude Stein me cansou; Hemingway me fascinou com um ou dois contos, e nada mais; a vida de pessoal de Fitzgerald não me interessa muito, apesar de ter escrito um dos meus romances preferidos, The Great Gatsby. São muitos porres em Paris e poucas idéias dos americanos: valeu, no entanto, o preço que paguei na liquidação. Eu já tenho a coleção da Globo de Em busca do tempo perdido, de Proust, traduzida, entre outros, por Mário Quintana, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade, mas os tomos estão quase se despedaçando. Comprei então a nova, da Ediouro, traduzida por Fernando Py. Pode ser que a tradução, como alguns reclamam, tenha simplificado ou alterado o texto original; ainda assim, a coleção é prática - condensada em apenas três volumes, em vez de sete -, num papel fino e com capas lindas. Outro clássico francês que trouxe para casa, com prefácio de Tarsila do Amaral, é O vermelho e o negro, de Stendhal, uma narrativa longa e às vezes pesada, mas com apuradas observações sociais e psicológicas. Eu li Os homens preferem as loiras, de Anita Loss, publicado nos anos 20 com o apoio de Mencken, e que depois virou filme com Marilyn Monroe, mas ainda não tinha a continuação: Mas os homens se casam com as morenas. Não é verdade, mas enfim: o subtítulo também é cômico: O revelador diário de uma lady profissional. O livro é divertidíssimo, mas deve ter perdido a graça para quem se acostumou com confissões dessas - como disse um amigo - "escritoras-putas" atuais. É engraçado ainda reparar que, depois de oitenta anos, o modelo satirizado por Anita é apresentado, em livros e seriados, como estereótipo da mulher de sucesso. Não aprenderam nada. Mulher de sucesso é Patricia Highsmith, criadora do personagem Ripley - que, reduzido a um almofadinha homossexual, estrelou recentemente em alguns filmes. O livro está se desintegrando, mas ainda pretendo ler - mesmo que em outra edição - Uma questão de moral, que foi publicado no Brasil em 1989. O livro de Peter Fleming, Uma aventura no Brasil, é muito lido por estrangeiros que visitam o país - e infelizmente desconhecido pelos brasileiros. Fleming veio para cá nos anos 30, e se enfiou numa expedição pelo interior do país. É o tipo de relato que, suspeito, foi escrito mais vezes por estrangeiros do que por brasileiros. Nessa mesma época, Maurício Nabuco - filho de Joaquim Nabuco - circulava por salões internacionais, e depois escreveu o simpático Drinkologia dos Estrangeiros, traçando as origens e recomendando as melhores combinações do que se oferecia elegante do Hotel dos Estrangeiros, no Rio. O posfácio é de Antonio Houaiss - que, se não entende de economia e política, pelo menos entendia de comida e bebida. Mauricio Nabuco tinha o hábito de, mesmo sozinho, jantar de smoking, e inventou uma engenhosa taça de champanhe: uma taça normal, mas sem a base para ser apoiada numa mesa. Nabuco gostava de seus convidados com o copo sempre na mão - e, portanto, levemente embriagados. Uma edição com ensaios acadêmicos sobre Huckbelerry Finn, de Mark Twain, parece piada, para quem conhece o autor - que se dispôs a metralhar quem fizesse "interpretações" de seu livro. Huck é um dos personagens mais bacanas da literatura ocidental. Dispenso comparações do Rio Mississipi com a vida, etc., e comprei Adventures on Huckbelerry Finn por cinco páginas: um ensaio de T. S. Eliot sobre o livro. Henry James, porém, praticou um tipo de literatura, digamos assim, oposta à de Mark Twain - e em The Turn of the Screw, dizem, encontrou sua expressão máxima. Ando, ultimamente, distante de romances psicológicos - apesar de encantado com Proust -, e deixarei esse volume na prateleira enquanto leio O ponche dos desejos. Pouca gente lê Michel Ende - o desconhecido escritor de A história sem fim -, que concentrou sua produção em literatura infantil. O ponche dos desejos é uma história criativa, com um relógio acompanhando as páginas e figuras diferentes das que encontramos em historinhas tradicionais. É o que precisarei para alternar com o conteúdo enciclopédico pesquisado por Alberto Costa e Silva, e publicado em A enxada e a lança, uma densa história da África antes da descoberta portuguesa - comparável, em rigor científico e ambição literária, com os melhores momentos de Gilberto Freyre. Wilson Martins é o crítico literário mais odiado no Brasil, talvez por ser também o mais cosmopolita. Comprei apenas o segundo volume da sua monumental História de inteligência brasileira - que estranha por ser tão longa. O embaixador Sérgio Correa da Costa, no entanto, preferiu uma forma mais tranqüila e alternativa de narrar a história do Brasil: e descreveu, em Brasil: Segredo de Estado, passagens desconhecidas da história brasileira, que às vezes preferimos esquecer. A bonita Enciclopédia da Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho, deve ter exigido trabalho, pela extensão do seu conteúdo, mas se focou em autores conhecidos e em folclóricos. A impressão é que desafetos dos organizadores foram ignorados, ou injustamente reduzidos a notas muito curtas. Machado de Assis também tinha inimigos. Josué Montello - que conhece profundamente Machado - selecionou algumas polêmicas do escritor, e publicou os artigos de suas disputas em Os inimigos de Machado de Assis. É bom ver que Machado - hoje unanimidade - nunca agradou a todos, mas também não aceitou passivamente as críticas que recebia. Diz muito, aliás, o fato de que vários de seus inimigos tenham desaparecido na história. O contraponto a Machado e Montello pode ser uma seleção de quadrinhos No One You Know, de Bek. Bek escreveu alguns capítulos de Seinfield, e é o primeiro nome que vários leitores da New Yorker procuram quando abrem a revista. A idéia da evolução de Platão a Darwin é o subtítulo de Lance de dados - mais uma maravilha de Stephen Jay Gould, um desses escritores que silenciam quem reclama da produção literária atual. É, claro, um livro sobre ciência - e Gould é um cientista erudito -, mas nem por isso pode ser desconsiderado como literatura. Gould escreve de forma leve e agradável, apresentando idéias complexas - quando, digamos, revisa idéias sobre a Teoria da Evolução - usando a habilidade dos rebatedores de baseball como exemplo. City Life - Urban Expectation in a New World, de Witolt Rybczynsk, representa também essa safra de idéias contemporâneas realmente novas, descrita por autores competentes. Outro exemplo dessa tendência é Fiction on Business: Insights on Management From Great Literature, do ex-CEO e professor de literatura Robert A.Brawer. Brawer se limita aos clássicos para oferecer soluções a problemas empresarias, como a submissão dos interesses pessoais aos da corporação. É imperdível para quem divide o mundo em segmentos, e acha que a "vida real" é muito diferente da "dos livros". Não recomendo, apesar das compras que fiz, que procurem a livraria em que passei horas, nas últimas semanas. Quase tudo se esgotou. Todos os livros que comprei eram exemplares únicos. E nem eu mesmo pretendo ler todos esses livros em breve. Não sou adepto de um método sistemático de leitura. Guardarei a maioria na prateleira, enquanto acabo os que já comecei. Para que, um dia - daqui, digamos, uns vinte anos -, eu esbarre com Patrícia Highsmith de novo, e decida acompanhar a história de um garoto de 15 anos numa pequena cidade no interior dos Estados Unidos. É por acaso que descobrimos prazeres escondidos. Eduardo Carvalho |
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