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Quarta-feira, 9/6/2004 Dia D, lembrança e esquecimento Daniela Sandler No último domingo, 6 de junho, o Dia D fez sessenta anos. A data foi celebrada na Normandia, reunindo duas dezenas de chefes de Estado – entre eles, os dirigentes das nações mais poderosas do planeta: o anfitrião, Jacques Chirac; George W. Bush; a Rainha Elizabeth e Tony Blair; Vladimir Putin; Gerhard Schröder. Só em segurança, a imprensa estima que o governo francês tenha gasto 1 milhão de euros por dia. A comemoração em si, que incluiu 142 veteranos, teria custado 45 milhões de euros – empregados nas demonstrações militares com aviões e navios, em um mosaico de telões gigantes postos em frente ao mar, um show de fogos de artifício, entre outros recursos. Por que tanta prodigalidade? O que torna os sessenta anos especiais em relação, por exemplo, aos cinqüenta, quarenta, ou setenta? Há, claro, algo de arbitrário em todas as comemorações de aniversários – ainda que isso seja disfarçado pelo apelo dos números “redondos,” terminados em 0 ou 5 (os 500 anos do descobrimento, 450 anos da fundação de São Paulo, 15 anos da queda do Muro de Berlim, etc.). Além disso, o passar do tempo parece conferir mais-valia às datas, como se a longevidade de um local ou acontecimento fosse sinal de honra ou legitimação. Mas isso não explica a pompa em torno dos sessenta anos. Como em toda forma de memória coletiva, a celebração de 2004 diz tanto ou mais sobre o tempo presente do que sobre o evento passado. Como o evento é representado, e o que ele representa hoje – essas duas questões definem a forma e a função da memória, e o seu significado. A celebração de 2004 é única por vários motivos. Como a imprensa repete com desconcertante naturalidade, é provavelmente a última vez em que os veteranos, que participaram do desembarque aliado na costa francesa em 1944, estarão presentes numa celebração – têm entre 78 e mais de 90 anos. Cerimônias memoriais, obviamente, não demandam participantes do evento original – mesmo porque parte do espírito é honrar os ausentes, perpetuar a lembrança dos mortos contra o esquecimento. Mas as comemorações do Dia D têm contado até agora com sobreviventes da invasão, cuja presença tem sentido especial. Um veterano que percorre a praia onde travou batalha testemunha, com a força das lembranças e da presença física, os momentos vividos no passado, a experiência individual, e o evento coletivo; rememora não apenas a própria luta bem-sucedida, como os companheiros ao redor que pereceram. Para os demais que assistem às cerimônias, ver os participantes é talvez o modo mais envolvente, ou convincente, de contato com a história. E, por fim, poder honrar os soldados aliados em sua presença – ou simplesmente demonstrar gratidão – é um ato mutuamente significativo. O tempo de uma vida marca, desta forma, a vida das comemorações. Quanto mais nos distanciarmos do acontecimento original, mais a data será despersonificada, abstraída. Poderá ser mais facilmente esquecida, ou mais facilmente mitificada – o que, de certo modo, dá na mesma, pois a estilização dos mitos envolve o esquecimento dos fatos. Fim da Guerra Fria A segunda razão que torna a comemoração dos sessenta anos especial é política. Pela primeira vez, um chefe de Estado alemão foi convidado a participar da cerimônia. E, também pela primeira vez, um chefe de Estado russo compareceu. Para os alemães, essas duas presenças simbolizam definitivamente o fim da era do pós-guerra. O convite ao chanceler alemão é a prova de que as relações entre a Alemanha e a Europa estão, como se diz por aqui, “normalizadas”. A presença de Vladimir Putin, por sua vez, evidencia o fim da Guerra Fria – o período de inimizade entre a União Soviética e os demais Aliados. Que esse gesto reconciliatório tenha ocorrido em 2004, e não em 1994 – quando a Cortina de Ferro já não existia mais – deve-se talvez ao tempo necessário para que transformações profundas assentem nas sociedades e possam ser incorporadas em ritos e manifestações culturais. A Rússia havia deixado de ser a superpotência inimiga desde meados dos anos 80, e a Alemanha Ocidental havia estabelecido a política da boa vizinhança e da “normalidade” já desde sua fundação, no fim dos anos 40. Mas, se as boas relações funcionam com mais ou menos fluência nas arenas políticas e no cotidiano, as instâncias simbólicas, em que se representam histórias e identidades nacionais, são carregadas de emoção e ambigüidade. Para entender essa asserção, é preciso analisar o significado do Dia D para os envolvidos. Para norte-americanos, britânicos e franceses (entre muitos outros), o Dia D equivale a glória e liberação. Para os alemães, representa um momento decisivo de derrota, perda e humilhação. Para os russos, por sua vez, que, lutando do outro lado da Europa, não participaram da invasão normanda, o Dia D oblitera seus próprios feitos. A mítica do dia decisivo No dia 6 de junho de 1944, o desembarque de tropas norte-americanas, britânicas e canadenses na costa francesa abriu o front ocidental na Segunda Guerra. Até então, a guerra estava sendo decidida no leste europeu, em território soviético. A costa oeste da Europa (do sul da França ao norte da Noruega) estava ocupada pela Alemanha, que, como proteção, construiu a “Muralha do Atlântico”: uma combinação de bunkers, casamatas, minas e artilharia. Com a brecha na Muralha do Atlântico – a abertura do front ocidental –, os alemães estariam encurralados, cercados a leste e oeste. Prevista para o dia 5 de junho, a invasão teve de ser adiada pelo tempo ruim, nublado e de mar bravio. Na manhã cinzenta e nublada do dia 6, as tropas aliadas iniciaram o desembarque em cinco pontos diferentes da costa normanda, entre os quais a praia de Omaha, a cargo dos norte-americanos, que ficou famosa em parte por ter sido o local da batalha mais feroz, onde o maior número de soldados morreu (cerca de 3.000). O sucesso do “dia mais longo da história” dependeu não apenas das estratégias ou armas aliadas, mas também da pura força da massa de soldados. Veteranos alemães relatam que, para sua surpresa e horror, quanto mais atiravam e matavam, mais surgiam soldados na praia e barcos no horizonte. Mataram 90% dos soldados da primeira leva – mas, conforme o dia foi passando, foram gradualmente superados pelos milhares de outros soldados. Mesmo com perdas severas, erros (bombas e paraquedistas jogados no lugar errado), e a morte de 20.000 civis franceses (mais ou menos o mesmo número de soldados mortos, de ambos os lados), a empreitada teve sucesso. Abriu o front de batalha no oeste e um flanco por onde cerca de 1 milhão de pessoas desembarcaria nos próximos meses para ajudar nos esforços de guerra. O Dia D entrou para a História como marco decisivo da vitória aliada contra o exército alemão, como ponto de virada nos rumos da guerra. Ainda que a derrota alemã tenha ocorrido quase um ano depois, quando, após a tomada de Berlim pelos russos, os alemães assinaram a rendição em 8 de maio de 1945, o Dia D é celebrado como o início da “liberação da Europa”. Essa visão foi alimentada pelos aliados durante a Guerra Fria, minimizando o papel da União Soviética. Em 1943, no entanto, o exército alemão começara a sofrer perdas no front oriental. Muitos historiadores consideram este o verdadeiro ponto da virada, em que os soviéticos conseguiram ganhar vantagem e inverter a relação de poder na guerra. Mas não existe um equivalente do Dia D no imaginário mundial que comemore o esforço muitas vezes heróico e a contribuição decisiva dos soviéticos. A presença de Putin sinaliza as relações cordiais entre a Rússia e o Ocidente não apenas pela boa vontade dos franceses, que estenderam o convite, mas também pela elegância com que o presidente russo assistiu à comemoração da “liberação da Europa” sem que o papel de seu país merecesse mais do que menção passageira. Fracasso militar ou liberação da tirania? A presença do chanceler alemão também abriga sentimentos contraditórios. Ainda que muitos alemães, hoje, se refiram ao fim da guerra como liberação da tirania nazista, essa visão não era necessariamente comum há sessenta anos. Em primeiro lugar, a maioria do povo alemão apoiava o regime nazista e mantinha por Hitler uma admiração quase fanática. Em segundo lugar, muitos viam a guerra como questão de patriotismo e defesa nacional. Lutavam por seu país e seus compatriotas, e acreditavam que essa luta fosse independente de orientação política – por exemplo, o general Erwin Rommel, um dos mais famosos e competentes do exército alemão. Finalmente, quando as bombas aliadas começaram a chover e arrasar cidades alemãs, muito antes do Dia D, os alemães que até então haviam sido relativamente poupados da guerra sofreram concretamente a agressão inimiga – e foi como inimigos que enxergaram os aliados. Longe de redenção ou liberação, o Dia D e o final da guerra representaram fracasso militar para os patriotas, perda política para os nazistas, e rendição e submissão ao inimigo para o país inteiro. Esses sentimentos, ou ressentimentos, tiveram de ser engolidos no pós-guerra, em parte pela ocupação aliada, que impôs a “denazificação” da Alemanha, em parte pela pressão das dificuldades cotidianas de sobrevivência e reconstrução. Mas o fato de um sentimento ser engolido ou recalcado não significa que ele tenha desaparecido – e de fato reapareceu, de formas diversas, nos anos 80 (mas isso é assunto para outra coluna!). Schröder, como representante do povo alemão, sentou-se na tribuna dos vitoriosos para honrar os soldados que derrotaram seu país – na guerra, aliás, na qual o chanceler perdeu o pai. Que ele tenha sido convidado indica que os franceses, britânicos e norte-americanos não enxergam a Alemanha como encarnação do mal ou inimigo eterno. Que ele tenha aceitado o convite indica que a Alemanha não rege sua política internacional por ressentimento ou orgulho. Memória e esquecimento Para narrar uma história, forjar um mito, ou reforçar um sentimento nacional, é preciso – como eu disse acima – não apenas lembrar, como esquecer. Não se pode incluir tudo numa narrativa, tanto por uma questão de espaço como por coerência. Acontecimentos são múltiplos, envolvem forças contraditórias, resultam de conjunturas complexas e se ramificam em desdobramentos ainda mais complicados. Um evento histórico – seja ele localizado no tempo ou disperso num período mais longo, seja um conjunto de atos ou um movimento social – não ocorre de forma nítida, definida, embalada individualmente com conteúdo e significado claros. Esses conteúdos são impostos depois, quando o evento passa a ser representado: seja essa representação um livro de História, lembranças pessoais, uma matéria de jornal, um filme. Cada autor, individual ou coletivo, dessas representações, recorta da imensidão caótica e emaranhada de fatos os elementos congruentes com sua versão. Essas versões são úteis, é certo, e sem elas não seria possível entendimento racional. Mas não são a inteira verdade. Até mesmo a versão francesa do Dia D, que, com o discurso congratulatório de Jacques Chirac e a encenação multimídia que se seguiu, faz crer que o 6 de junho de 1944 foi um dia de júbilo unânime na França, e que o seu país na guerra se reduziu aos papéis de vítima da ocupação nazista, e de heróis da Resistência. Nem uma palavra, nem mesmo uma menção torta, fizeram referência à Colaboração francesa com o nazismo. O General de Gaulle foi justamente lembrado como líder do movimento antinazista; mas o Marechal Pétain foi injustamente esquecido como líder da colaboração. Ainda que a Resistência tenha contado com grande número de franceses, muitos outros se dividiam entre indiferença, medo, ou simpatia pelos nazistas. E, se a ocupação nazista não pode ser descrita como agradável, para muitos franceses pareceu bem menos custosa do que a liberação aliada, que matou milhares de civis e destruiu cidades e campos de cultivo com bombardeios dirigidos aos nazistas. Alguns soldados norte-americanos relatam que a recepção francesa nas cidades liberadas foi em geral bem mais fria do que o esperado: em parte, pela destruição. Finalmente, até mesmo para os soldados que participaram – britânicos, canadenses, americanos – o Dia D não é puramente uma data triunfante. O desembarque foi um dos confrontos mais sangrentos da guerra. Um veterano, em entrevista, balança a cabeça, enxuga as lágrimas, e diz apenas: foi muito triste, muito triste. A praia, uma faixa mortífera de areia, varada de corpos, pedaços de corpos, coberta de sangue. Rodeados pelos companheiros mortos, os sobreviventes confrontaram-se com a própria vulnerabilidade. Uma cena de horror e aniquilação – de coragem, por certo, mas não de triunfo heróico. É cada vez mais fácil, com o passar do tempo, endossar uma representação maniqueísta do Dia D e da Segunda Guerra. Bem e mal parecem claramente divididos, como times rivais de futebol. Sim, o horror do regime nazista não deixa dúvidas quanto ao seu caráter. Mas isso não significa que as outras posições tenham sido necessariamente claras, unificadas e “boas”. A destrutividade nazista se encontrava também em outras nações, de outras maneiras – como as bombas atômicas norte-americanas e a colaboração francesa atestam. Que a necessidade de lembrar e honrar o evento e as pessoas não nos impeça de conservar a visão crítica – sem o quê, as lições da história terão sido esquecidas. Daniela Sandler |
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