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Quarta-feira, 30/6/2004
Quando a poesia me surpreende com seus chás
Ana Elisa Ribeiro

A despeito dos prolixos de plantão e dos enfezadinhos 24 horas, de vez em quando tenho a prova de que a poesia sustenta, por séculos e ainda, seu poder encantatório.

Confesso uma enorme preguiça de recontar aquela velha história de que as tradições orais "transmitiam" histórias em verso, de preferência imensas narrativas, porque essa forma (audível) era mais fácil de memorizar e de retransmitir e de encantar, no sentido mais mágico do termo. Não se tratava apenas de deixar uma platéia atônita com o ritmo e a sonoridade da "canção", mas também de deixá-la sem ação ou catártica, quase o que hoje seria terapêutica.

Se pensarmos bem, essa modalidade de "poesia" falada, completamente oralizada, não podia, ainda, ser chamada de "verso", simplesmente porque ainda não era escrita e não tinha formato que se pudesse enxergar. Então que fique claro que o ritmo e o som (inclua-se aí a rima) serviam como fórmulas, que eram passadas de geração a geração, sem perder a forma.

E mesmo com o advento da escrita, e da escrita alfabética, a poesia continuou plena. Registrada pelas mãos dos "taquígrafos" e escribas, deixava-se ver e era guardada como documento, às vezes testemunha do nascimento e da metamorfose de alguma língua, como acontece com os cancioneiros europeus, que armazenam tesouros como as cantigas de amigo e de amor, a Cantiga da Ribeirinha, primeiro documento em língua portuguesa (ao menos para alguns filólogos, mas há controvérsias), datado de 1189 e que muito me deixa admirada de sua sonoridade.

Essa poesia toda, que depois ganhou formas e cálculos, e os perdeu, e tiranizou a liberdade e depois tornou-se quase forma pura, para então transformar-se em poética de verso livre... Essa poesia continua, mesmo num mundo grafocêntrico e celulósico, mundo do equipamento eletrônico e do texto digital, dos gêneros emergentes e do usuário letrado... essa poesia continua dona de seu cetro, ex-rainha e ainda majestade.

É assim que ela adentra uma sala de aula na boca duns poetas mineiros e à medida que eles vão declamando, passam a recitar, e então emanam e os alunos, adultos atarefados e afobados, param de surtar, param de ser hipertensos, param de se atropelar e escutam a poesia. Reagem com o corpo estático e os olhos vítreos; observam estupefatos e nem sei se compreendem o que escutam. Na voz do poeta, um Drummond (que por aqui é um clássico), uma Cecília, um mineiro desconhecido e um Fernando Pessoa. Cada aluno compõe sua gama de emoções e alguns chegam a lacrimejar. Ao final da récita, querem, ansiosos, saber de quem era tal ou qual poema, que coisa linda, onde posso encontrar, talvez eu compre, tem livro? E o poeta emenda poemas uns nos outros, como uma "teresa" de fugir da velocidade deste mundo pseudocivilizado. Os alunos deixam as pastas no chão, ao pé das cadeiras, ficam lânguidos como moças nas sacadas e sorvem os poemas até o texto acabar. Aplaudem simultâneos, como se alguém houvesse ordenado, mas não é isso. Trata-se do encanto, do entusiasmo da poesia.

Ao final do evento, colhem-se os depoimentos espontâneos, como se estivéssemos num alcóolicos anônimos de poetas: "eu me identifico tanto com este texto!"; "eu sempre me emociono quando escuto que 'vai, Carlos, ser gauche na vida'".

Então a poesia sai da sala, os poetas vão ser gente atravessando a avenida e os alunos portam suas pastas pretas cheias de burocracia e vão para casa conferir os horários dos despertadores para amanhã. Mas a poesia continua investida de seus poderes de sereia. E só quem a resiste é o homem teimoso e sintático de plantão, na esquina, fora de hora.

a forte impressão de que a vida vai dar voltas alucinadas
e de que vamos começar uma era nova parece cada dia mais evidente. enquanto isso, são 23 contratos por fazer, o aluguel por pagar, as contas da C&A, o telefone fixo, o celular pós-pago, a mudança, o chá, as notas de quase 200 alunos, as rescisões de contrato, os cheques pré-datados, a troca de óleo do carro, a gasolina aumentada de novo, as baterias dos relógios de pulso, a chegada dos armários e do móvel, os textos pros minicursos assim como os projetos para o ano que vem. É angustiante fazer planos para o ano que vem quando mal se chegou à metade do ano que corre. A sensação de congelamento forçado ajuda a adoecer a cabeça. O corpo pede sono pesado, mas qualquer pardal que pousa no fio me acorda. Como se inaugura uma vida nova? Alguém sabe algum ritual que dê sorte?

e getúlio vai, getúlio vem
a casa está quase montada, ainda sem gás, sem água, mas já tem luz. eu ainda não dei à luz, mas também estou quase. mais uns dias e a criança assoma. os pais estão fazendo festinhas. mamãe e papai se casaram. jorge rocha tornou-se belo-horizontino (com hífen!) na sexta-feira, quando chegou de mala, cuia e livros na rodoviária, com atraso de meia hora. e nem cheguei a ficar nervosa. achei apenas que a lei de murphy é a mais eficiente do universo. o apartamento não suporta os quadros na parede, mas vamos dar um jeito nisso com uns pregos de aço. aproveitamos todos os espaços e o quarto do bebê já tem cheirinho de fraldas... limpas. a mala que vai pro hospital começa a tomar corpo. jorge rocha começa a se acostumar ao ar rarefeito e empoeirado da cidade, assim como compra jornal na banca do bairro. não reclama de nada, apenas começa a habitar a capital mineira. eu começo a habitar o bairro ao lado. habito esta nova vida. "você já sente que mora comigo?" "não". mas isso é questão de meia dúzia de noites no oitavo andar.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 30/6/2004

 

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