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Quinta-feira, 8/7/2004
No frigir dos ovos, todos estavam podres
Adriana Baggio

Junho de 2003. Dia de final da Libertadores da América, Santos vs. Boca Juniors. Ainda estava na novela, mas logo depois começaria a partida. De repente, no intervalo do dramalhão, entre um comercial e outro surge a figura do Faustão. Era uma chamada ao vivo de dentro do estádio, em Santos.

De microfone na mão, o apresentador começou sua fala justificando a presença naquele local como uma volta aos tempos de repórter. Depois dessa introdução, falou da bonita torcida que lotava o estádio. Nessa noite, o Brasil todo seria Santos desde criancinha. Em seguida, associou essa união do povo brasileiro com a necessidade de se juntar forças para combater a fome no país, através do programa do governo Fome Zero. Para finalizar, costurou tudo dizendo que era isso que a Nestlé estava fazendo, através da campanha Junta Brasil: unindo todos os brasileiros em torno de um objetivo comum.

A fala dele terminou e a imagem do estádio deu lugar a um comercial publicitário qualquer. A marca Nestlé não apareceu em nenhum momento, nem mesmo no fechamento do "comercial", como é de praxe nesse tipo de manifestação. Fico me perguntando quantas pessoas perceberam que se tratava de um espaço pago, e não de mais uma das chamadas esportivas tão comuns na Rede Globo.

Esse exemplo ilustra dois dos pontos mais polêmicos relacionados à comunicação hoje: a falta de limites claros entre o conteúdo editorial e o conteúdo comercial dos veículos e a promiscuidade que envolve meios de comunicação, governo e empresas.

Na época do jogo da Libertadores, Faustão era o garoto-propaganda da Nestlé na campanha promocional Junta Brasil, que sorteava casas aos consumidores que juntassem rótulos de produtos Nestlé. Através dessa mesma campanha, a Nestlé ajudava o programa Fome Zero, do governo federal. Nada de condenável, não fosse a ausência de "marcas" , de códigos, que classificassem a chamada do Faustão como um espaço pago veiculado no intervalo da programação da emissora.

Por mais que o telespectador consumidor de hoje esteja bem mais esperto e tenha um relativo domínio das estratégias publicitárias, esse tipo de inserção comercial disfarçada de conteúdo é capaz de fazer as pessoas encararem a mensagem como jornalística. Os códigos que sinalizam a mensagem publicitária não estavam presentes. Por outro lado, houve uma preocupação em transmitir a mensagem com as marcas características das chamadas jornalísticas da emissora. Por que essa preferência pelo jornalístico do que pelo comercial? O desgaste que a publicidade vem sofrendo faz com que os anunciantes procurem outros espaços para colocar suas marcas, espaços que possam agregar credibilidade a elas. Aí é que entra essa preocupante e crescente mistura entre o que é jornalismo e o que é publicidade dentro das mensagens transmitidas por um veículo de comunicação.

Por mais que se torça o nariz, é a publicidade que possibilita a circulação da mensagem jornalística. É como se fossem a gema e a clara. Ambas estão dentro do ovo, em contato uma com a outra, mas sem que se misturem. A clara é para fazer suspiro, a gema é para fazer outras receitas. Se clara e gema se misturarem, não dá para fazer suspiro: ele perde a consistência. O que sai dessa mistura é uma omelete, que não distingue mais a clara da gema. O que o telespectador tem consumido é uma omelete onde não se sabe o que é notícia - informação veiculada porque é relevante - ou o que é publicidade - informação veiculada porque é paga.

Essa "mistura" também acontece entre o governo, os meios de comunicação e as empresas. Há uma relação promíscua entre essas instâncias, que deveriam ficar de olho umas nas outras. Na realidade, quem tem um pouquinho de contato com esse meio sabe que o governo é o principal sustento de muitos veículos de comunicação, que recebem para falar bem dele ou pelo menos para não atacá-lo. Como acreditar na relevância ou na idoneidade da maior parte dos veículos de comunicação dentro desse esquema de funcionamento?

Essas e outras questões são tratadas no livro Por uma outra comunicação - mídia, mundialização cultural e poder (Record, 2003). Com organização de Dênis de Moraes, as mais de quatrocentas páginas do livro dividem-se em ensaios de gente séria e famosa por suas críticas ao modus operandi da comunicação frente à globalização e à podridão das relações entre a mídia, o estado e a iniciativa privada. Textos de Jesús Martín-Barbero, Benjamin R. Barber e Naomi "Sem logo" Klein, só para citar alguns, expõem as estratégias de dominação através dos meios de comunicação, a padronização e descaracterização cultural e, o que é mais importante, propostas para uma outra forma de comunicação.

Algumas dessas propostas, colocadas por José Arbex Jr. no ensaio "Uma outra comunicação é possível (e necessária)", estão ao alcance da sociedade civil, já que depender de uma postura do governo equivale a pedir para a raposa defender o galinheiro. Os cidadãos podem, por exemplo, criar um index de programas ou emissoras de TV que fazem mau uso da mídia e, em contrapartida, dar ampla divulgação ao uso bem-sucedido dos meios de comunicação. Mas antes disso, é preciso despertar o senso crítico nas pessoas. Isso pode ser feito em casa, na escola, na faculdade, nos centros comunitários. Perceber o porquê de cada notícia ou a forma como os acontecimentos são apresentados serve para entender as motivações de cada meio. Com base nesse tipo de informação, é possível partir para o protesto o mesmo o boicote a determinados programas, títulos e emissoras.

É claro que esse tipo de atitude é praticamente uma utopia, e os meios sabem disso. Vide a recém-encerrada novela Celebridade, que tecia uma crítica a um modo de relacionamento das pessoas com a mídia que é exatamente o praticado pela Globo. É a mesma lógica de um sistema que permite a existência de um deputado ladrão que atua criando ou votando leis de combate à criminalidade. Como tanto a novela tem audiência quanto o deputado, votos, esse pessoal se permite até mesmo dar tiro no próprio pé.

Por uma outra comunicação oferece um ótimo repertório para discussões sobre a perversão do sistema midiático mundial. Há ensaios com estilo mais acadêmico e outros mais acessíveis. Independente da linguagem, todos trazem aspectos importantes sobre o papel da comunicação. Ler esse tipo de texto dá trabalho. Mas é o primeiro passo para aprender a quebrar os ovos e descobrir o que realmente existe dentro deles. O problema é que, muitas vezes, o ovo está podre. Nesse caso, não há suspiro, pudim nem mesmo omelete que possa ser feita. O negócio é jogar no lixo e começar tudo de novo.

P.S.: acabo de saber que a ABERT (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão) enviou um comunicado aos seus associados informando que o Governo Federal pretende criar uma rede de 8 mil rádios comunitárias para divulgar suas ações. Para que usar a mídia se você pode construir uma só para você? Os radiodifusores estão em polvorosa. Sem divulgar ações do Governo, não tem mais verba do Governo.

Para ir além





Adriana Baggio
Curitiba, 8/7/2004

 

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