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Quarta-feira, 25/7/2001
Eu não acredito em pesquisa de opinião
Daniela Sandler

Importantes meios de comunicação têm estampado em suas manchetes palavras alarmistas sobre os primeiros seis meses da nova prefeitura paulistana. Friso: alarmistas. Querem causar alarde, e causam. Exemplo de notícia fabricada, de jornalismo tendencioso e, pior, de lavagem cerebral, as reportagens que têm por base as pesquisas de opinião se sustentam no princípio aparentemente incontestável de que é a voz do povo que fala por meio do jornal. Ninguém pára para pensar, no entanto, que a pesquisa de opinião é ela mesma um fato criado, e não natural (independentemente da precisão e honestidade de apuração). "Até que enfim deram voz ao que penso!", deve repetir o leitor, sem pensar que é ele que passará a repetir o que pensam os formadores de opinião.

A Folha foi quem começou, com mais uma de suas pesquisas DataFolha: há algumas semanas, publicou um certo "ranking de prefeitos do Brasil", baseado na recepção dos cidadãos aos primeiros seis meses de mandato. Marta Suplicy apareceu num dos últimos lugares. A pesquisa foi manchete de domingo e, na semana seguinte, virou capa da Vejinha: "Começou mal", dizia o periódico sobre a prefeita.

Do nada, de súbito, os jornais criam comoção pública em torno de suposta decepção política. Um dia antes de sair a Folha, ninguém falava disso. Falava-se de apagão, ACM, morte do Marcelo Fromer, motoboy. Chega a Folha no domingo e é o que basta para os leitores balançarem as cabeças em sinal de sim, como vaquinhas de presépio: "sim, que governo ruim". Tal foi o impacto da matéria que a notícia, já velha de uma semana, ainda rendeu o especial da Veja em São Paulo. E lá vão de novo os leitores e sua enxurrada de cartas criticando a prefeita. Até mesmo os que saíram em sua defesa não questionaram o mau-caratismo jornalístico desse tipo de evento artificial e forçado. Ficaram na defensiva, rebatendo as críticas pontuais, mas aceitando como fato natural, auto-evidente e consumado o "difícil começo" do governo da Marta.

Consumado, de fato, o fato já está: o estrago foi feito, como sempre. Eu pergunto: era tão difícil prever que poucos moradores de São Paulo se diriam satisfeitos com a cidade atualmente? E mais: era tão difícil prever que, encontrando arrasados os cofres de uma das metrópoles mais complicadas do mundo, Marta não conseguiria resolver tudo em seis meses? Ou será que os paulistanos são tão burros e ignorantes a ponto de crer que Marta transformaria São Paulo em Genebra em um semestre?

Convenhamos: não era difícil supor que os paulistanos reclamariam, que diriam que as promessas de eleição não foram cumpridas, que - escândalo dos escândalos! - os buracos de Moema ainda não foram tapados. Como se a dimensão dos problemas paulistanos não fosse suficiente, a Vejinha andou dando capas como "Que Inferno!", sobre o trânsito de São Paulo, para reforçar ainda mais o bordão. Dizer que São Paulo é infernal é chover no molhado. Obviedade, no entanto, nunca foi ingrediente de bom jornalismo nem de notícia de verdade. Isso me faz pensar que todo esse destaque e insistência na decepção com Marta e no inferno paulistano têm motivos mais fundos que simplesmente "dar voz ao povo".

Esses motivos, impossível sabê-los todos - inclinação política? rabo preso? compromissos venais? Em vez de tentar adivinhá-los, proponho refletir sobre o caráter das pesquisas de opinião de uma forma mais geral: seriam mesmo veículo do pensamento popular e instrumento para intervenções democráticas? Seriam mecanismos inocentes e neutros, independentes do que querem e pensam seus patrocinadores? E, se há uma dose de previsibilidade em muitas das pesquisas, como ocorre neste caso, não seriam elas o meio ideal para provar uma tese pré-concebida ou sustentar um ponto de vista? Sob o aspecto inocente de "fato", muita coisa é divulgada para dar a impressão de que, no jornal, há "verdade", e não opinião. Ora, para começo de conversa, há uma seleção prévia de quais fatos serão divulgados, como e quando. No recorte da realidade já se imprime nossa visão de mundo - e só a cegueira seletiva pode impedir o reconhecimento disso.

Mas voltemos às pesquisas de opinião. Onipresentes em época de eleições, quando esquentam as vendas de jornal e fornecem material para as campanhas, as pesquisas de opinião têm se estendido a todos os aspectos da vida. Como recurso jornalístico, têm o atrativo de ser interativas, o que é sempre um recurso de sedução e entretenimento. Exemplo disso são as enquetes de Internet ("Em quem você jogaria uma torta?", "De qual parte do corpo da Gisele você gosta mais?" etc.). Além disso, a pesquisa faz com que o leitor se sinta "ouvido", com que ache que se dá a devida importância a suas idéias: ingrediente saboroso para assuntos de grande leitura. Por exemplo: uma matéria sobre a seleção brasileira, devidamente acompanhada por um quadrinho do tipo "Você acha que o Felipão deve permanecer ou não?". Por fim, pesquisa ajuda a vender mais: a Folha sonda assiduamente a opinião de leitores a respeito do jornal para obter um índice, por exemplo, de "assuntos que dão leitura" ou de "colunistas mais populares". Isso serve para produzir um jornal mais adequado ao paladar do leitor. Exatamente como uma pesquisa de mercado. No caso, é uma pesquisa de mercado (não obstante o fato de a interseção entre mercado e jornalismo ser um tanto, digamos, nebulosa).

Não se deve ignorar a hipótese de que, talvez, um dos motivos da pesquisa de opinião em questão seja a venda de jornal. É uma forma de dar ao leitor o que ele quer ler. É muito mais fácil e seguro contentar o leitor reverberando o óbvio e chovendo no molhado do que mostrando uma perspectiva nova e, talvez, incômoda. Ainda mais aqui, agora, em que vivemos na cultura da reclamação (como diria Robert Hughes, citado pelo colega Paulo Salles). As pessoas preferem reclamar a colaborar. É não apenas mais fácil, mas também mais gratificante vociferar "A Marta não fez nada! Prometeu e não cumpriu!" do que compreender os problemas paulistanos em sua complexidade. A frustração com o atual estado da cidade encontra na reclamação sua válvula de escape: é quase uma descarga fisiológica. É muito mais trabalhoso ter paciência, suportar as dificuldades enquanto estão sendo resolvidas e ajudar, direta ou indiretamente (há algumas semanas, o colunista Fabio Danesi Rossi escreveu algo similar sobre FHC e o apagão). Para o jornal, é mais fácil exibir as vozes da insatisfação do que ajudar o leitor a entender os muitos fatores que contribuem para a situação ser insatisfatória e aqueles necessários à sua resolução. É mais simples engrossar o coro dos descontentes e proclamar um fracasso prematuro: quem há de discordar? Quem não entenderá? Desse modo, o jornal, em vez de informar, perpetua a infelicidade política de um país em que os cidadãos se eximem de suas responsabilidades cívicas e deixam campo aberto para o show de horrores em que a nossa vida pública se transformou, consolando-se, talvez, no refúgio falso de mecanismos "democráticos" como as pesquisas de opinião.

Eu não estou descobrindo a pólvora com este artigo. Mesmo que pesquisas de opinião sejam precisas, mesmo que ninguém tenha trapaceado ou mentido, o uso que se faz delas é reconhecidamente problemático. O tipo de pergunta que se faz, como se faz, a maneira de veiculação, o período, tudo isso afeta o efeito que a pesquisa tem. Há uma certa qualidade cíclica: a pesquisa de opinião influencia a opinião pública. Se as pesquisas fossem neutras, esse seria um círculo: a opinião pesquisada coincidiria com a opinião do leitor, sem modificá-la. Se a opinião pública mudasse, seria por outros fatores, externos, e bastaria nova pesquisa para medi-la. Mas pesquisa não é termômetro. Pesquisa influencia, dobra, torce, sombreia e faz tender. Tanto é que, na proximidade das eleições, muitos países (inclusive o Brasil) proíbem a divulgação de pesquisas para que o voto não seja influenciado.

O mecanismo é sutil. Não é que sejam inventados dados ou idéias. A pesquisa faz uso de matéria-prima disponível: neste caso, a insatisfação com a vida em São Paulo. Essa insatisfação é farejada por editores, diretores ou repórteres que encomendam a enquete. Quando da veiculação da pesquisa, a vaga insatisfação já foi processada e empacotada na forma de idéias prontas, bem acabadas e, por que não dizer, pré-fabricadas. Servidas ao leitor, aparecem como fato inconteste. Engolidas e repetidas, conformam a voz de quem as adota. Ora, no princípio, era a insatisfação com a cidade. A partir dela, o jornal cunha a "má avaliação de governo", seja lá o que isso quer dizer. A avaliação do governo, por sua vez, desdobrada em quesitos, ganha dimensão nacional com a invenção do tal "ranking". Não faz sentido falar em "ranking" de prefeituras: é comparar alhos com bugalhos, já que as cidades são muito diferentes. Só faz sentido se a intenção for política: mostrar que este ou aquele partido está favorecido ou desgraçado. O mau desempenho de um partido no tal ranking ganha corpo nos gráficos, conteúdo nos textos e respaldo pelo status de notícia. O desempenho vira má fama, a má fama denigre a imagem pública do partido, a imagem pública deteriorada resulta em fraco desempenho eleitoral. Dá para ver o encadeamento? Se você não se convenceu, lembre-se de que, no ano que vem, teremos eleições presidenciais, e que o candidato no topo das pesquisas (elas, de novo) é atualmente o Lula - não por acaso, um dos que têm maior índice de rejeição entre as classes dominantes; não por acaso, do mesmo partido da prefeita de São Paulo. E tudo começa com base num estado de espírito - o descontentamento com a cidade - que, a rigor, pouco ou nada tem a ver com filiação política.

Tomemos os dois aspectos envolvidos: um, a repetição da visão de mundo do leitor, para agradá-lo. Outro, a manipulação de tendências sociais dispersas como munição para um ponto de vista particular, disfarçado de "verdade". É isso o que se quer de um jornal ou uma revista? Você quer comprar um jornal que simplesmente repete o que você pensa? Não seria isso um insulto à sua inteligência? Você quer, por outro lado, uma revista tendenciosa, parcial, que molda a sua opinião?

A pesquisa de opinião que aqui citei tipifica práticas jornalísticas corriqueiras e, não tenho ilusões, duradouras e persuasivas. Deixarei, pois, a questão em aberto, propositadamente. Respostas fechadas e conclusões enfáticas em geral não fazem jus à complexidade dos problemas (e aí está mais um defeito das pesquisas!). Que não me confundam, no entanto, com os indecisos!

Post Scriptum

Retomando a discussão da cultura da reclamação: não acho que as pessoas devam ser inutilmente otimistas ou mentir em pesquisas de opinião. Apóio a Marta, mas não digo que São Paulo está bem. Oponho-me, sim, à maneira simplista de abordar o tema. A própria formulação da pesquisa é comprometida: melhorar São Paulo não se define como resultado finito e perfeito, mas como processo. Não é apenas ingênuo esperar que São Paulo vire Genebra: é absurdo. Não somos, nunca seremos. E nem Genebra é perfeita. A ilusão é achar que, mesmo hipoteticamente, São Paulo poderia estar sem falhas, sem buracos, sem favelas, sem assaltantes, sem enchentes. Quem espera que tudo se resolva de uma vez há de se frustrar com prefeito após prefeito, presidente após presidente, não importa se Lula ou FHC. Se, ao contrário, encararmos a realidade como processo social, não apenas seremos mais tolerantes com os "fracassos", como a própria palavra há de ter outro sentido. Fracasso será ficar de braços cruzados. Fracasso será gastar energia "descendo o cacete" em vez de pôr mãos à obra. Fracasso será reclamar dos buracos de Moema sem saber que o buraco é mais embaixo; odiar o assaltante em vez de odiar a desigualdade social; confundir o sintoma com a doença. Sucesso será saber que, para pôr ordem na casa, é preciso fazer um monte de coisas trabalhosas que não se podem enxergar ou medir no dia-a-dia, como organizar finanças; ou coisas que não dão manchete, como dar saúde, educação e habitação decentes aos habitantes dos bairros pobres e da periferia. Se abandonarmos a miragem, talvez abandonemos também uma nossa qualidade tão decantada na época da hiperinflação, e que ameaça voltar: a fracassomania.

Daniela Sandler
São Paulo, 25/7/2001

 

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