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Quarta-feira, 28/7/2004
A hora exata em que me faltaram as palavras
Ana Elisa Ribeiro

Tem um buraco na minha barriga. De lá sai um menino de quase três quilos e meio. Meio metro de guri. Os médicos narram como autores realistas. Cortam o cordão umbilical. O pai, sentado atrás de mim, segurando minhas mãos, vestido de azul celeste, chora mansamente. A vontade, me diz ele, é de dar um grito.

O buraco foi feito a bisturi. A anestesia pegou fácil. O soro é que deu trabalho. A cesárea foi inevitável àquela altura. Quando me abriam o ventre, senti uma ansiedade feliz em encontrar o rosto pequeno do menino que esperei tanto. E senti um medo enorme de ver a barriga murcha. Também um choro muito leve veio ao meu rosto. E um pano cinza tapava minha visão, como um teatro em que a cortina não se abre.

Ouvi quando o médico disse: está vindo! O outro veio empurrar a barriga por cima. A criança nasceu chorando e fazendo xixi. Os médicos riram e elogiaram-lhe as funções. Mamãe querendo ver. Papai emocionado. O buraco aberto. Os médicos costurando as entranhas da mais nova mãe da cidade.

A enfermeira lavava o bebê, o pediatra fazia umas medições. Mamãe esperava cheia de apitos e soluços de emoção. De repente, surge a médica com o guri nas mãos e o coloca sobre o peito da primípara.

Desde criança gosto de falar. E falo bem. Aprendi uns sons muito antes do prazo esperado e descobri cedo meus talentos verbais. Fiz carreira em Letras e escrevo por amor. Minha relação com as palavras sempre foi fácil e fundamental. Converso com todo mundo, dou aula, palestra, discurso para uma multidão, sem titubear. Faço alunos todos os semestres e não me impressiono com platéias. Escrevo todos os dias e tenho compromissos sérios com quem me publica, inclusive aqui no Digestivo. Não há texto que me constranja ou me comprometa. Não há palavra que me falhe. Mas naquele momento, quando deitaram o menino em meu peito de mãe, vivi meu primeiro e único conflito com as palavras. E não me veio nada.

O pai me pedia: fale com o bebê. E as palavras se embrulhavam na ponta da língua e voltavam para dentro, como se dançassem quadrilha. Anarriê. Olha a cobra.

O garotinho me olhava com esgares de susto e eu silenciava um olhar perplexo para ele. Acho que eu dizia: e agora? E ele me interpelava: qual é?

Durante meses ensaiei uns cumprimentos: Olá!, Lembra da minha voz?, Oi, sou sua mãe, Quer ser meu amigo?, Prazer, meu filho. E naquele momento, quando ele se deitou em meu peito ainda sem leite, fugiram-me os verbos, os ecos e todas as classes de palavras. Fiquei com um calar estampado nos olhos. Pensei em tocá-lo. Tinha certeza de que isso seria mais significativo do que a palavra. E como um Cristo, senti que minhas mãos estavam amarradas à mesa, uma com soro, outra com aparelho de medir pressão. Um susto, um desespero. Chorando, pedi: soltem minha mão? A médica deu um comando e pude alisar os cabelinhos úmidos do meu filho. Perscrutei a boca, os dedos, a sobrancelha. Toquei-lhe a barriga, como se desse um abraço. Pensei coisas muito amorosas, inclusive acho que as palavras é que ficaram também emocionadas. E o pai traduziu em voz alta: bem-vindo, filho.

Sim, agora sim
Como disse o sábio Jules Rimet, Eduardo Ribeiro Rocha nasceu na quinta-feira à noite, nem sei a que horas, porque eu estava naquela situação em que o tempo deixa de ser critério de existência e não se tem noção de nada. Sei que tive sinais de que ele nasceria às 11 da manhã, fui parar no hospital às 19h30 e a coisa toda aconteceu antes da meia-noite. Ele nasceu em 8 de julho de 2004, ainda não sei o que isso significa para os astrólogos, mas pra mim fui uma revolução. Estamos aqui, eu e Jorge, às voltas com fraldas, comprimidos para dor e berços. Viramantas, cobreleitos e babadores. Eduardo é uma graça. Nasceu cabeludo como um Beatle. É bonzinho, só chora com pertinência e ainda não sorriu (a isso, saiu ao pai). Não tem minhas sobrancelhas, mas tem meu queixo. Uma graça. Estamos os três apaixonados. E vocês... obrigada pelo apoio!

neste momento exato, ele chora
já descobrimos, em uma semana, que o enrolamos se colocarmos suas próprias mãos na boca pequena. começa a tocar a mamadeira e os peitos da mãe. prefere o seio esquerdo. reage com atraso ao flash das câmeras fotográficas. reconhece mãe e pai, talvez a avó materna. chora ao trocar fraldas e ao tomar banho. no frio... inverno belo-horizontino. foi registrado e já pode se alistar no Exército. tem pés e mãos grandes. chora rouco. dorme de dia e acende à noite. faz pose quando dorme. prefere o leite materno, assim como o calor do meu corpo. tem um pai maravilhoso, que só não dá o seio porque não pode. já fez um xixi no pai e um na avó paterna... desses jatos quentes que ninguém espera. golfou na mãe. sujou o berço e as roupas. já faz esgares que dão idéia de que será um garoto sério. neste exato momento ele se calou. posso imaginar a cena de papai dando mamadeira. mamãe está a escrever na sala do andar de baixo. uma degenerada. mas nem tudo é ser mãe. sejamos sinceras, meninas: é o milagre impressionante da vida, sim, mas a barriga mole e frouxa não anima ninguém. as cintas apertadas. as calças que não se fecham mais. os peitos que pingam leite e sinalizam que o bebê está com fome. as manchas na roupa. colostro, mamilos feridos, pijamas e soutiens que facilitam a amamentação. sejamos sinceras: é uma fase difícil. mas o bebê é lindo. um playmobil com vida.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 28/7/2004

 

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