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Quarta-feira, 21/7/2004 Quando a cidade inteira é uma festa: Berlim! Daniela Sandler Berlim é uma festa. Uma, não - muitas, aliás, espalhadas pela cidade inteira, pelo ano inteiro, em todas as horas do dia. E digo isso não apenas por conta da vida noturna da cidade, cultivada em clubes, bares e shows todos os dias da semana. A festa berlinense não se resume a esses pontos isolados de diversão: esparrama-se pela cidade, toma as ruas, espaços abertos, espaços fechados, borrando a distinção entre público e privado e ganhando dimensão urbana. Pois a mesma sede por diversão que anima a vida noturna e culmina na famosa Love Parade - uma espécie de carnaval tecno - é partilhada por gente de todas as idades e todos os gostos, e se manifesta numa atitude generalizada de aproveitar a cidade, ocupar seus espaços públicos, e festejar. No verão isso se evidencia com as festas de rua, tradicionais em toda a Alemanha: barraquinhas de comida, cerveja e artesanato tomam praças, calçadas e ruas de pedestres, em geral complementadas por um palco onde toca todo tipo de banda. No centro da metrópole a prefeitura organiza uma série de eventos ao ar livre durante toda a estação: óperas, shows, peças de teatro, happy hour e festas dançantes. O festival acontence na chamada “Ilha dos Museus” (Museumsinsel) - em si uma atração, um pedacinho de terra no meio do rio Spree ocupado por cinco edifícios históricos que abrigam arte e antigüidades - e no “Fórum Cultural” (Kulturforum), um conjunto de prédios modernos, também museus. No meio de arquitetura histórica e moderna, no coração de Berlim, o público toma o espaço aberto e conjuga a fruição do evento artístico à fruição da cidade. Os shows da Ilha dos Museus são pagos, e alguns são caros - o que não diminui sua popularidade. Mas há inúmeras outras opções em que não se gasta um tostão. Entre elas, as paradas de rua, da qual a Love Parade é só um exemplo. Em maio, o “Carnaval das Culturas” dura quatro dias. Pelas ruas do bairro de Kreuzberg desfilam grupos de música e dança de várias nacionalidades (o Brasil tem sempre presença dominante), e nos parques e praças há shows de música, dança, capoeira, e barraquinhas com comidas típicas. Em junho é a vez da “Christopher Street Day Parade”, a parada gay: carros de som apinhados de gente dançando tecno cruzam o Kurfürstendamm (avenida central em Berlim Ocidental) e se enfiam pelo bairro de Schöneberg (tradicional reduto da comunidade gay), em plena luz do dia, em meio a uma multidão dançante e fantasiada. A Love Parade é também um desfile tecno, que chegou a reunir um milhão de pessoas em seu auge, em 1999. Este ano, pela primeira vez desde seu início há quinze anos, a Love Parade não aconteceu - os organizadores não queriam arcar com os custos de limpeza, e a prefeitura proibiu. Em protesto, alguns entusiastas da parada organizaram - adivinhe! - uma demonstração em forma de festa, com som tecno e roupas coloridas no Kurfürstendamm. Festas ilegais e casas ocupadas Esse espírito de se apropriar da cidade e transformá-la numa festa ocupa tanto os espaços abertos das ruas como lugares fechados e privados. E se nas ruas o uso do espaço é regulado pelo governo, em espaços fechados esse nem sempre é o caso. Entre os clubes noturnos mais disputados estão os “clandestinos” ou “ilegais”, em que os organizadores utilizam espaços vazios ou abandonados para festas - casas, galpões, ruínas, até mesmo pontes. Essas festas são divulgadas no boca-a-boca e remontam à época da queda do Muro, em 1989, quando o centro de Berlim ainda estava semi-arruinado. Com o fim do regime comunista, a posse de imóveis em Berlim Oriental revelou-se uma questão complicada, e nos primeiros anos após a unificação muitos proprietários ainda não tinham sido definidos. No hiato entre a queda do Muro e a renovação urbana dos bairros centrais, sobravam lugares e oportunidades para as festas clandestinas, movidas pela euforia da nova era e pelo influxo de jovens e artistas de toda parte. Essa efervescência temerária era, por natureza, fugaz, e assim como a cara da cidade foi se fixando em fachadas renovadas e vitrines de novos negócios, a vida noturna foi se cristalizando em clubes e bares fixos e oficiais. Hoje os clubes clandestinos rareiam. Mas a atitude das festividades nômades permanece na postura berlinense de enxergar a cidade como campo aberto para ação e transformação, rompendo limites estabelecidos por lei ou por hábito e criando algo novo, e em muitos casos melhor. Essa atitude rebelde, utópica, já havia se manifestado, nos anos 70 e 80, na ocupação de edifícios antigos abandonados. Seus “invasores” eram comunidades de jovens desejosos por viver de uma maneira mais livre, regidos por espírito fraternal em vez de espírito comercial. As lendárias “casas ocupadas” de Kreuzberg, em Berlim Ocidental, e depois de 89 em Prenzlauer Berg e Friedrichshain, em Berlim Oriental, estão hoje quase todas regularizadas - devolvidas ao proprietário original, compradas pelos próprios “posseiros” ou por investores. Agora dentro da lei, a idéia de comunidade permanece em muitas delas, onde os habitantes-proprietários participam da restauração arquitetônica e colaboram na administração do edifício. Celebrar a cidade A vida festiva e pública dos berlinenses não se limita ao uso da cidade para celebrações, mas inclui também a própria celebração da cidade. Como, por exemplo, no “Dia da Arquitetura” (Tag der Architektur), um fim-de-semana em que mais de trinta escritórios de arquitetura abrem suas portas à visitação pública, e arquitetos conduzem visitas por suas obras recentes. Essas obras, que incluem casas particulares, hospitais, edifícios de escritórios, e restauração de prédios antigos, são selecionadas pela Câmara de Arquitetos de Berlim (Architektenkammer Berlin), e são apresentadas também numa exposição gratuita e num livro. As visitas guiadas também são gratuitas. Embora várias ocorram ao mesmo tempo, em cada uma há sempre no mínimo quinze ou vinte pessoas interessadas em aprender mais sobre sua cidade. Os arquitetos-guias dedicam algumas horas de seu dia para passear por suas obras e esclarecer dúvidas dos visitantes. Dessa maneira, os autores de edifícios - que, com seus projetos, inserem sua marca na face pública da cidade - desempenham eles próprios um papel público, entrando em diálogo com um grupo de desconhecidos, de todo tipo de profissão e idade, que normalmente não teriam a chance de um contato tão próximo com aqueles que estão produzindo a cidade. Alô, IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) - que tal algo parecido em São Paulo? Um evento similar, de maior porte, é dedicado a monumentos e edifícios históricos. No chamado “Tag des offenen Denkmals” - que pode ser traduzido como “Dia do Monumento Público” ou “Dia do Monumento Aberto” -, construções históricas abrem suas portas ao público, e a cidade é tomada por visitas guiadas em prédios, parques, quarteirões. Muitas vezes mais de cem pessoas participam das visitas gratuitas. O evento tem um clima festivo, de recreação; os passeios pela cidade são como pequenas incursões turísticas, e o acesso a locais normalmente fechados ao público dá um tom especial, celebratório. Por meio da festa, a história da cidade é revisitada e renovada pelo interesse dos participantes. No fim do dia, valorizam-se não apenas os locais e monumentos visitados, mas a cidade inteira. Pois, mais do que a data de construção ou o estilo arquitetônico deste ou daquele prédio, a beleza do “Dia do Monumento” está em pôr em prática a idéia de que a cidade merece um olhar atento, merece ser conhecida e descoberta em sua história e suas condições atuais - não para ser admirada com reverência, mas para ser conservada e melhorada. Esses eventos não se resumem ao verão, nem a construções. Durante a “Longa Noite dos Museus” (Lange Nacht der Museen), ônibus especiais transportam as pessoas por uma rota com dezenas de atrações culturais, incluindo não só os excelentes e inúmeros museus de Berlim, como vernissages em embaixadas, galerias, e o aquário municipal. Com um ingresso apenas, que custa menos que duas entradas de museu, o acesso é livre a todos os locais na rota, e aos ônibus que circulam a noite inteira. A “Longa Noite das Ciências” (Lange Nacht der Wissenschaften) é similar, mas dedicada, como o nome diz, a temas científicos, em exposições, feiras e palestras. Tradição de espaço público E até mesmo na época mais fria do ano, quando escurece às quatro da tarde e as temperaturas caem fácil abaixo de zero, as pessoas saem às ruas para se divertir nos Mercados de Natal de Berlim (Weihnachtsmärkte). Uma espécie de festa junina, esses mercados são montados pela cidade inteira e duram de um a dois meses, de novembro até o fim de dezembro. Artesanato de Natal, como bonequinhos de madeira e enfeites de árvore, se misturam a comidas típicas: lingüiça, bolinhos-de-chuva (sua versão alemã, chamada Quarkbällchen), um tipo de pão-de-mel (Lebkuchen), e, claro, vinho quente (Glühwein), servido em canecas enormes. Os mercados de Natal são um bom exemplo da utilização do espaço público urbano - ou, melhor dizendo, de como essa utilização está arraigada em práticas sociais. Esses mercados, tradicionais em toda a Alemanha, vêm sendo realizados desde a Idade Média - assim como os mercados urbanos normais, em que os agricultores e habitantes das cidades vinham vender sua produção. Essa apropriação do espaço coletivo e aberto da cidade - ruas, e a praça do mercado - era, é claro, controlada pelo governo. Assim como é hoje em dia. Mas esse controle, que tem como objetivo garantir a segurança e a organização para todos, não tolhe o caráter público do evento. Da mesma forma, o ingresso para a Longa Noite dos Museus ou para o festival na Museumsinsel não os torna “privados”, e não diminui a interação entre público e cidade, pessoas e espaço, pessoas e pessoas - interação que, afinal, é o que muitos de nós temos em mente quando, sonhadores, proferimos as palavrinhas mágicas: “espaço público”.... Daniela Sandler |
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