|
Sexta-feira, 30/7/2004 De uma volta ao Brasil - II Eduardo Carvalho Descrevi, na coluna passada, a primeira metade da viagem que fiz, há quatro anos, durante dois meses e meio pelo Brasil. Encerrei o texto anterior em Tutóia, na divisa entre o Piauí e o Maranhão, depois de mais ou menos um mês de viagem. Não comentei nossa passagem por Alcântara, mas tudo bem: não comentei também outras coisas, porque não cabe tudo neste espaço - nem na minha memória ficou tudo detalhadamente gravado. Vamos embora. De Tutóia fomos para Jeriocoacara, uma praia sempre considerada, pelos guias internacionais, entre as cinco mais bonitas do mundo - muitas vezes encabeçando a lista. É um exagero. Jeri - como chamam os íntimos - fica a 60 km do asfalto e passou décadas sem eletricidade. Atraiu, portanto, hippies de todos os lados, que gostam de mostrar que se isolam - e, por isso, não podem ir tão longe, senão fugiriam despercebidos dos turistas convencionais. Jeri, hoje em dia, está incluida no pacote de paulistas que passam três dias em Fortaleza, e seu público então pode ser separado em dois grupos: o dos estudantes e mochileiros que pretendem alcançar lugares exóticos e os estrangeiros e adultos que querem apenas conhecer uma praia bonita. É esse, em resumo, o perfil de quem viaja pelo litoral brasileiro. Em Jericoacara, no entanto, apesar da fama de rústica, são os adultos que buscam conforto que estão no lugar mais apropriado. A praia é realmente lisa e limpa, linda, e a vila ainda não está - não estava - destruída ou descaracterizada, com a invasão de turistas. Mas é uma espécie de Disney World hippie: como se aqueles rastafáris fossem contratados para emprestar um clima de descontração ao ambiente. O estereótipo não convence. Mas diverte, quando se percebe que esse comportamento é baseado não numa crítica, mas numa ignorância mesmo do que é a sociedade que pretendem desprezar. Todos caminham com Sartre embaixo do braço, e soam sérios quando abrem o livro. Passamos um dia na Lagoa Azul, que fica perto de Jericoacara. Fomos de caminhonete, em companhia de uns dez estrangeiros. Era um grupo variado: um matemático norueguês, uma apresentadora da MTV Argentina, um casal português e um gay holandês, que eu me lembre. Passamos a manhã nadando na Lagoa, e à tarde comemos e jogamos futebol - eu joguei só cinco minutos, até torcer o tornozelo. Saímos às seis da tarde, para pegar a camionete de volta - por causa do chilique da modelo argentina e do seu namorado, que interromperam a partida de futebol. Ficaríamos até mais tarde, inclusive o motorista, que não parecia com pressa. Subimos na caçamba, então, e o casal de portugueses na cabine. Era noite - e o céu, mais uma vez, impressionante. Todos estávamos cansados e em silêncio, olhando as estrelas, até que, de repente, nossa camionete, no meio daquele deserto, acerta a frente de outra camionete. Foi, na verdade, mais para um empurrão, porque os dois motoristas estavam devagar e, numa passagem que só cabia um, disputavam quem iria entrar na frente. Nosso motorista começou a gritar pela janela, até sair da cabine - e cair no chão, de tão bêbado. Foi cômico, e assustador: porque, resolvido o problema, ele quis nos compensar pelo inconveniente - nos levando para um passeio nas dunas. Não era exatamente o que queríamos: à noite, depois desse susto, subir e descer dunas na caçamba de uma camionete guiada por um motorista bêbado. Ele insistiu, e fomos - mas, sinceramente, não precisava. Em quatro dias em Jericoacara, visitamos Nova Tatajuba, comemos um pão delicioso numa conhecida padaria da vila, tive meu canivete roubado, fomos procurar, de madrugada, uma baleia encalhada ao lado da Pedra Furada, etc. - e pegamos o carro em Jijoca, no quinto dia, para guiarmos até Fortaleza. Para eu guiar, quer dizer: porque um x-salada numa lanchonete suspeita forçou o meu amigo a deixar suas forças nos postos onde abastecíamos o carro. Chegamos em Fortaleza depois das 22 hrs., sem lugar para ficar - a não ser uma recomendação imprecisa do casal de portugueses que conhecemos em Jericoacara. Não descobrimos a pousada indicada, mas encontramos o quarteirão, na Praia do Futuro - e alugamos um quarto apertado e abafado, que nos custou 4 reais por dia. Não reclamamos, então - e tentamos aproveitar a cidade. O Centro Cultural Dragão do Mar foi uma surpresa agradável. A lagosta do Colher de Pau é, em comparação com São Paulo, muito mais barata e mais fresca, portanto imperdível. Não procurávamos mais praias, muito menos as urbanas. Fortaleza me impressionou pela limpeza e pela riqueza - nos melhores bairros, pelo menos. Ao contrário do nosso próximo destino, Canoa Quebrada. Jericoacoara é o que foi Canoa Quebrada, há 30 anos - e o que será, se não tomar cuidado. Canoa Quebrada é uma vila que mistura turismo de classe-média e moradores locais, que ficaram por lá quando era moda andar na praia pelado. Nem a praia é especialmente bonita. Quando perdi meu óculos, num bar, perguntei para um rastafári se ele havia o havia encontrado - e ouvi uma bronca desnecessária e cansativa, de que não é porque ele era negro e tinha um visual "diferente" que era ladrão. Ladrão talvez não, mas ficou difícil desvincular sua imagem da de um idiota preconceituoso. Fiz a barba em Canoa Quebrada, com um barbeiro barretense e simpático - e barbudo -, e fomos embora. Para Natal, onde dormimos num hotel de nome curioso: Amazonacre, que tinha outra filial em Rio Branco. Dormidos e saímos rapidamente de Natal, no dia seguinte - para descansarmos, por uma semana, na Praia da Pipa, ainda no Rio Grande do Norte. A Pipa já é uma praia com freqüência mais normal e mais educada, e menos gente buscando fazer tipinho. Quando começou a ficar famosa, atraía por causa dos golfinhos, que nadavam todo dia na frente dos turistas, e das falésias, que continuam lá. Hoje, os golfinhos estão na praia ao lado, ainda mais bonita e vazia, onde os avisados passam o dia. Nessa praia, pegamos onda com golfinhos ao lado, enquanto um barco cobrava fortunas para mostrá-los em alto mar - e muitas vezes não conseguia. Encontramos na Pipa o matemático norueguês que conhecemos em Jericoacoara, e com ele alugamos um bugue para irmos até a divisa com a Paraíba, a uns 30 km pela praia. Atravessamos rios e balsas, e entramos preocupados numa floresta, em busca de uma lagoa preta - preocupados porque, naquela semana, cinco presos haviam escapado de uma prisão próxima, e suspeitavam que se escondiam por ali. Achamos apenas a lagoa, felizmente, onde passamos horas, sozinhos. Continuamos até a Paraíba, até o Rio que divide os estados, e voltamos - só que na volta a balsa já tinha fechado, e precisamos pegar a estrada asfaltada. Com um bugue quase despedaçado, à noite, corremos entre buracos e caminhões, até chegarmos na Pipa, todos resfriados - depois de um dia de calor e sol, e uma noite fria, com vento na cara, andando de bugue. O norueguês passou os cinco próximos dias na cama, contando as telhas do casebre em que dormia. Nós fomos para Caruaru - a cidade de Álvaro Lins e do meu avô, que se conheceram crianças. Álvaro Lins é um dos meus críticos literários brasileiros favoritos - e Caruaru é uma das minhas cidades brasileiras favoritas. Chegamos em Caruaru à meia-noite, nos acomodamos às 2 da manhã - porque todos os hotéis estavam fechados -, e fomos direto jantar na feira. As duas barracas que serviam refeições estavam abertas, servindo os comerciantes acordados, que enquanto comiam assistiam, em silêncio, à Sessão Coruja na televisão. Escolhemos entre carne de sol e frango - ambos enormes e baratos. A feira de Caruaru é inacreditável: vende de tudo e funciona 24 horas. Alguns comerciantes não tem com quem revezar, e dormem em serviço - e na cabeça, para se proteger da iluminação, vestem uma calcinha escura. Têm relógio, tênis, calça, bolsa, artesanato, alicate, bola de futebol, tudo - simplesmente tudo está à venda na feira de Caruaru, e com desconto. Na cidade, tem também o museu de Luiz Gonzaga, ao lado de onde funciona a maior Festa de São João do Brasil. O artesanato de barro, popular no nordeste, é quase todo baseado no estilo do Mestre Vitalino, de Caruaru - e seu filho está lá até hoje, em plena produção. A Banda de Pífanos é também de Caruaru, mas não vimos sua execução - fomos, depois de dois dias, na quarta-feira, para Recife, na semana anterior ao carnaval. Na sexta-feira fomos e voltamos de Porto de Galinhas, onde o mar é muito azul. No sábado, em Recife, acontece - dizem - a maior concentração humana do mundo, no Galo da Madrugada. É um evento dispensável, se você se incomoda um pouco em ser empurrado, de um lado para o outro, durante horas, sem conseguir andar. Consegui escapar rapidamente, e voltar para casa. Passamos o domingo de carnaval em Olinda, onde tentaram proibir o axé. Na época, a moda era funk, e me lembro de muita gente se agarrando e de meninas fazendo xixi - deveria escrever mijando? - na calçada, com a discrição de uma cadela rottweiler. Havia, desfilando pelas ruas, meia dúzia de bonecos gigantes, com uma bandinha tocando frevo - mostrando, como num museu, o carnaval de antigamente, de uma época que, aparentemente, ninguém sentia falta. Todo mundo estava - parecia - feliz. Nós nunca nos esquecemos de que - apesar de visitar, por exemplo, o carnaval de Olinda - nosso ritmo era outro: nós não morávamos em Recife, e não pegamos um avião de São Paulo para passar quatro dias bebendo e pulando. Estávamos em uma viagem longa. Tínhamos compromissos. As aulas já haviam começado. Precisávamos chegar em São Paulo, no máximo, na semana depois do carnaval. Segunda-feira de carnaval, então, acordamos às 5 da manhã, arrumamos o carro, e fomos embora - para Salvador, a 1.000 km de distância. Antes, paramos na Praia do Forte, para encontrar algumas amigas, e pegarmos os convites para o camarote daquela mesma noite. Quase dormimos na festa. Na terça, fomos assistir os Filhos de Ghandi homenagear ACM, e na quarta viajamos para outra cidade bacana, onde fomos extremamente bem recebidos: Santo Amaro da Purificação, conhecida, pelos íntimos, como "terra de Caetano". Santo Amaro é uma cidade pequena e agradável. Tem uma comida sensacional, mas infelizmente não pudemos passar mais de um dia na cidade - e saímos no dia seguinte a que chegamos, voltando, pelo interior da Bahia, para o litoral, até o norte do Espírito Santo. Cruzamos o Espírito Santo como cruzamos Alagoas e Sergipe - olhando tudo pela janela do carro, e sem conhecer nada a não ser postos de gasolina. Não tínhamos tempo. Guiando mais de 1.000 km novamente, do Espírito Santo chegamos no Rio, onde deixamos uma encomenda em Copacabana. Tiramos duas fotos na praia para registrar a passagem - e continuamos com um destino inusitado, para quem já havia conhecido, em dois meses de viagem, praias demais. Fomos - precisávamos ir - para Trindade, onde o Rio de Janeiro se separa de São Paulo, e onde o fã clube de Renato Russo deve manter a sua sede. É em Trindade que se reúne adolescentes rebeldes, que fogem em casa em busca de um lugar tranqüilo e remoto. É, podemos dizer, Jericoacoara de fim-de-semana, porque é mais perto e mais feia - só que sem os turistas normais de Jeri. Fomos para Trindade para encontrar uma amiga do meu amigo. Cheguei em Trindade à uma da manhã e saí às 6, sozinho - porque meu amigo, comprometido, passou mais alguns dias por lá. Foi o suficiente para eu ouvir um discurso de meia hora, de um cara de mais de 30 anos, dizendo que o Roberto Marinho "manda" no Brasil, a Internet é uma ferramenta "perigosa" e o brasileiro é "um povo alienado" - inclusive, e principalmente, eu, porque discordei de uma ou outra opinião. Ou talvez porque não estava usando a camiseta do Renato Russo. Vai saber. Fui-me embora para São Paulo. Pela Rio - Santos, ou BR-101 - que eu acompanhava, com poucos desvios, desde seu ponto inicial, em Touros, no Rio Grande do Norte. Parei em Bertioga para comer um pastel, como se estivesse voltando de Ubatuba, depois de um fim-de-semana comum. A estrada estava carregada. Fui devagar - parecia, mas não era, para mim, um fim-de-semana normal. Depois de mais de 10.000 km. de estrada, passando por lugares abandonados e perigosos, era estranho, de repente, estar de novo em São Paulo. Eu estava, há um mês, perdido no interior do Maranhão, e há dois dias atravessara pequenas pontes na Bahia, em cidades antigas, numa manhã e nebulosa vazia. Eu havia chegado no estado de São Paulo - e a cidade, aos poucos, se aproximava. Tudo era muito diferente: os carros, as pessoas dentro dos carros, a forma de dirigir, as praias, a estrada. E a cidade, quando cheguei: entendi então, naquele momento, a sensação de quem veio do interior e nunca esteve antes em São Paulo. O tamanho da cidade assusta. Hoje, depois de quatro anos, visitei mais capitais, conheci melhor outras, viajei a outras partes do nordeste, etc., e ainda sobra muito para conhecer no Brasil. Fui recentemente, por exemplo, ao sul de São Paulo, e encontrei beleza e pobreza inesperadas, num parque desconhecido. Vou bastante para o interior, e fico espantado com o que vejo, por exemplo, na feiúra de Mairiporã ou na riqueza de Ribeirão Preto. De São Paulo a Maresias, a 200 km, no litoral, há também muita coisa para se observar: a diferença entre as construções, a decadência das padarias, o mau gosto dos shoppings, as indústrias funcionando, as favelas crescendo, o pequeno pedaço de Mata Atlântica que ainda existe intacto, que em manhãs ensolaradas forma uma paisagem maravilhosa com os morros da região. Não é preciso ir longe para se conhecer o Brasil. Mas é recomendável: porque a distância renova nossa capacidade de percepção do que está perto - e nos ajuda a descobrir novidades. Eduardo Carvalho |
|
|