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Quinta-feira, 29/7/2004 Equador, de Miguel Sousa Tavares Ricardo de Mattos "Onde é que estão os escritores portugueses no Brasil? E onde é que estão os escritores brasileiros em Portugal?" (Joaquim Romero de Magalhães) O escritor Miguel Sousa Tavares nasceu em 1.952 na cidade portuguesa do Porto, filho da recém falecida poetisa Sophia de Mello Breyner Adressen - prêmio Camões de 1.999. Cronista politemático da imprensa lusitana, escreve atualmente nos jornais Público e A Bola, na revista Máxima e é comentarista do Jornal da Noite, transmitido pela TV1. É autor de obra diversificada: Sul - Viagens, livro evidentemente sobre viagem; Anos Perdidos, crônicas; Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, apresentado como ficção aproximada da reportagem; O Segredo do Rio, conto infantil; Um Nómada no Oásis (sic), textos políticos; e Sahara - A República da Areia, de reportagens. Participou da Festa Literária Internacional de Paraty d'este ano. No dia dez passado, e junto com Pablo De Santis, palestrou em torno do tema A História Como Inspiração. Oxalá sua visita tenha estimulado nosso público a conhecer Equador, seu primeiro romance e primeiro livro a ser lançado aqui. A grafia original, mantida intacta, não apresenta mínimo óbice à fruição do valoroso livro, escrito n'um português elegantíssimo, praticamente a reeducar o brasileiro no trato do idioma. Dificilmente recorre-se ao dicionário durante a leitura, provando que as tão alardeadas diferenças no uso de cá e de lá residem mais no plano da lenda que no da realidade. Além d'isso, o escritor conciliou um enredo despretensioso à competência na pesquisa e organização de fatos históricos. Verifica-se seu amor ao debate quando no correr da estória os personagens discutem questões valendo-se de argumentos firmes e claros, o que impede indicar o autor como defensor de tal ou qual tese. M. S. Tavares é muito comparado a Eça de Queirós, por críticas que teria tecido, n'este romance, à sociedade portuguesa do século XIX. Acrescenta-se ainda sua suposta intenção em mostrar a imutabilidade da cena política e social apesar o interstício de cem anos. Em que pese um escritor - qualquer um - escrever sempre com um pé em seu tempo, sequer o autor confirma o segundo ponto. Quanto ao anterior e lendo o livro por inteiro, repara-se no predomínio da descrição sobre a crítica. É mais adequado falar-se em reconstrução, pois tempo e local são recuperados com um esmero ímpar. Se um retrato fiel apresenta as mazelas com nitidez, não se pode simplesmente dizer que há crítica. Apenas não houve um cenário político e social favorável a ser mostrado. Estamos em Portugal e partimos do ano de 1.905 para chegar à véspera do famoso regicídio. O rei D. Carlos I e seu filho mais velho, o príncipe herdeiro D. Luis Filipe, morreram no atentado ocorrido em Primeiro de Fevereiro de 1.908. Foi o penúltimo rei português, pois em 1.910 proclamou-se a República e depôs-se o herdeiro que assumiu o trono, D. Manuel II. No mesmo país, dois casos idênticos de coroação de príncipes secundários na linha de sucessão. O personagem principal Luís Eduardo Valença é caracterizado precisamente: "Era um homem livre: sem casamento, sem partido, sem dívidas nem créditos, sem fortuna nem apertos, sem o gosto da futilidade nem a tentação do desmedido. O que quer que el-rei tivesse para lhe dizer, para lhe propor, para lhe ordenar, a última palavra seria sempre sua". Em suma, um homem estabelecido social e profissionalmente, sem pretensões e livre, cuja tendência natural seria passar despercebido pela vida. Sempre sem compromisso, ele escreveu sobre a situação das colônias portuguesas um artigo jornalístico de repercussão inesperada. Como havia séria tensão entre Portugal e Inglaterra acerca da persistência ou não da escravidão nas colônias daquele, a atenção do rei D. Carlos recaiu sobre Luís Bernardo. O governo português não via solução imediata para o insistente problema da escravidão velada em São Tomé e Príncipe. Se Luís Bernardo possuía uma, que fizesse o favor de aplicá-la in loco. Ele foi convocado pelo rei para cumprir uma tríplice missão: convencer os roceiros a obedecer as medidas antiescravagistas necessárias, com estas medidas não levar as ilhas à insurreição e finalmente manter à distância o enviado britânico. Eis aí o problema, pois se havia intenção, não havia preparo. O personagem chega à colônia - politicamente chamada de província - enfrentando a todos e perdendo-se com atos precipitados e impulsivos apesar de nobres. Pode-se afirmar que ele não soube dosar a própria virtude. Quis mostrar-se amigável com os criados n'um local onde preza-se a hierarquia - até hoje é assim: advogados apregoam a independência profissional, mas ao anunciar-se a aproximação d'um juiz, todos ficam em pé liberando assentos, penteiam-se às pressas e começam a pigarrear para as saudações. Quis alterar com argumentos novos uma ordem estabelecida durante os séculos. Quis, enfim, que os ilhéus desfizessem-se do que lutaram com imensa dificuldade para construir. Se ainda recorriam ao trabalho escravo, deve-se ao fato dos administradores das roças serem constrangidos a gastar o mínimo e obter o máximo de rendimento aos proprietários. D'esta forma, se Luis Eduardo combateu a escravidão, e ele empenhou-se, não apresentou alternativas, não se dedicou ao convencimento dos proprietários residentes e não se apercebeu que o entrave talvez estivesse fora de lá. O prejuízo era causado tanto pela escravatura em São Tomé e Príncipe, quanto pelo proprietário residente na corte, que anelando rendimentos e despreocupado dos custos humanos. Demorou para ele atentar que sua carreira impetuosa defendia mais os interesses de empresários ingleses - tementes da concorrência das ilhas no mercado cacaueiro - que os de seus patrícios. Quando um fazendeiro local referendou as palavras de seu amigo João Forjaz e Luis Bernardo tomou definitivamente consciência de seus atos, sua missão já era inviável e carreira arruinada. Se parte da missão consistia em manter afastado o cônsul inglês, o governador fracassou ao tratá-lo como amigo pessoal e ao provocar escândalo no envolver-se com sua mulher. David Lloyd Jameson e sua mulher Ann são apresentados no capítulo X. Em que pese a excelência da obra, aludo a dois pontos pouco simpáticos. O primeiro ponto concerne ao exagero de certas descrições. Há no livro cenas esplêndidas, como a do rei D. Carlos em caçada ou, bem mais adiante, aquela em que o novo governador consegue saber d'um operário as informações sonegadas pelos administradores das roças. Todavia, outras sobejam. Logo nas primeiras páginas, os detalhes das notícias d'um jornal de Dezembro de 1.905. No capítulo VI, Luis Eduardo chega à ilha e ao dirigir-se ao palácio do governo, pede que seu secretário nomeie as ruas pelas quais passam. Perde-se quem nunca pisou em São Tomé. No capítulo X, relatos das excentricidades dos marajás e demais potentados indianos. No capítulo XII, detalhes sobre a chegada do automóvel em Portugal. Parece entusiasmo do autor em aproveitar todo o material levantado e se não embaraça a leitura, diminui seu ritmo e distrai. O segundo ponto respeita ao apelo ao repentino. Ann, sem mais, surge apaixonada por Luis Eduardo. Ou a sutileza foi muita, ou é sem maiores flertes que ambos declaram-se e entregam-se às cenas sensuais do livro, prenhes de detalhes. Nem mencionaria isso se o fim do mesmo Luis Eduardo não fosse também abrupto, imprevisto. Toda a estória sugere que, encerrado o mandato, ele passaria uma longa temporada no estrangeiro e tornaria a Lisboa para usufruir de suas rendas. Como a personagem foi construída com larga dose de brio e coragem e ressalvado o respeito do autor à verdade histórica - o que é difícil de apurar pelo leitor comum - M. S. Tavares age de forma contraditória ao suicidá-lo, considerando-se o suicídio como uma fraqueza do indivíduo diante das provações. Para ir além Ricardo de Mattos |
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