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Quinta-feira, 5/8/2004 Quando a verdade não importa Adriana Baggio Quando se pretende saber a verdade sobre a opinião de alguém acerca de um assunto, o que significa essa verdade? É o que a pessoa diz ou o que ela pensa? O que é verbalizado, o que é explícito, é mais verdade do que o pensamento que não chegou à boca através das palavras, mas que permanece implícito nelas e na atitude dessa pessoa? Esse ponto é uma das muitas polêmicas que cerca um dos maiores clássicos da literatura contemporânea: o relato do assassinato dos quatro membros família Clutter, em 1959, no Kansas, Estados Unidos, transformado em romance pelo não menos polêmico Truman Capote. Talvez a maior novidade que se possa falar hoje sobre A sangue frio é o seu relançamento no Brasil pela Companhia das Letras, dentro da coleção Jornalismo Literário. Uma edição imperdível porque, além da bela capa e do cheiro de papel novo, traz dois elementos que ajudam a compreender e fruir ainda mais a obra-prima do escritor americano: a apresentação, feita por Ivan Lessa, e o posfácio, por Matinas Suzuki Jr., também coordenador da coleção. A polêmica abordada no início deste texto é uma das que cita o jornalista Matinas Suzuki Jr. no posfácio do livro. A sangue frio é um clássico tanto pelo conteúdo quanto pelas circunstâncias que cercam o seu desenvolvimento. Truman Capote devia uma reportagem à revista The New Yorker. Folheando o jornal, leu uma pequena nota que informava o brutal assassinato de uma família inteira do interior do Kansas. Interessado no assunto, o escritor passou mais de um ano na cidade, Holcomb, recolhendo informações e depoimentos dos moradores sobre a família Clutter e as circunstâncias do assassinato. Os Clutter eram o tipo de família que faz as pessoas se perguntarem, mais tarde, "por que com eles?". Eram membros ativos da comunidade e da igreja, abastados, filhos bonitos, inteligentes e dedicados. Através dos depoimentos dos vizinhos e amigos da família, Truman Capote construiu uma imagem dos Clutter que faz o leitor ficar mais próximo deles e, portanto, potencializa o choque da tragédia. Capote conseguiu conquistar não apenas os desconfiados interioranos de Holcomb, mas também os assassinos, Perry Smith e Dick Hickock, e obteve relatos deles sobre suas vidas e sobre o crime. No posfácio, Matinas Suzuki Jr. conta que essa relação do escritor com os criminosos é outro ponto polêmico da história. Os guardas da prisão diziam que Truman Capote era amante de Perry Smith; já outra versão conta que eles só colaboraram com o escritor porque receberam dinheiro. O fato é que Truman Capote conviveu com Perry e Dick durante os 5 anos que passaram no corredor da morte e também assistiu ao enforcamento deles, como uma das três testemunhas a que ambos tinham direito. Como interlocutor privilegiado, Truman obteve informações sobre a infância de cada um, os motivos que os levaram até a família, a rota de fuga e o momento da prisão. Dando continuidade à suspeita do tipo de relação entre Truman e Perry, alguns chegaram a dizer que o escritor fez uma descrição muito parcial do criminoso, procurando justificar o ato pela história de vida do rapaz. A questão da verdade do relato permeia as análises que se faz de A sangue frio. O livro é considerado o fundador do jornalismo literário, ou romance sem ficção. No entanto, outras narrativas no mesmo estilo já haviam sido publicadas antes. O que torna o livro um clássico, tanto no seu aspecto técnico quanto estético, é a mistura entre a excelência do texto com a veracidade do conteúdo. Capote não fez nenhuma anotação durante a coleta de depoimentos e informações. Usava uma técnica de memorização e dispensava gravador, papel e caneta, conseguindo com isso, deixar as pessoas mais à vontade e obter informações mais naturais e verdadeiras. No entanto, a "pura verdade" da narrativa de Truman Capote é questionada. Ivan Lessa comenta, na apresentação do livro, que o homenzinho mentia furiosamente. Já Matinas Suzuki encerra com a opinião dos bons jornalistas literários, que acreditam na capacidade de Truman Capote em perceber o que as pessoas realmente queriam dizer, e colocar isso no livro, em detrimento das suas palavras exatas. O fato é que A sangue frio é um livro tão interessante por si mesmo quanto pelas histórias a ele relacionadas. Levou quase 6 anos para ficar pronto, o que fez com que Truman fosse acusado de aguardar a execução dos acusados para colocar no livro, com o objetivo de aumentar sua repercussão. Romances, enquanto narrativas idealizadas, são muito mais interessantes que a própria vida. As "histórias reais" retratadas em livros e filmes talvez não fizessem tanto sucesso se os autores não acrescentassem pitadas de ficção. Considerando que A sangue frio tenha seu aspecto romance só na estética, não no conteúdo, talvez a parcela romancista de Truman Capote realmente tenha tido razão em aguardar a execução de Perry e Dick para finalizar seu livro. A punição exemplar dos culpados por um crime tão bárbaro é o que os leitores precisam para continuar acreditando na justiça, seja ela divina ou humana. E é por isso que lemos romances e assistimos novelas. Viver sempre na realidade é insuportável. Para ir além Adriana Baggio |
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