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Terça-feira, 10/8/2004
Deitado eternamente em divã esplêndido – Parte 3
Luis Eduardo Matta

Embora plenamente ciente de que a discussão em torno da identidade brasileira daria assunto de sobra para muitas dezenas de artigos, podendo render até um livro - como, aliás, já rendeu vários - vou encerrar, com este texto, a minha modesta e um tanto pretensiosa análise do tema, podendo, como bom e atento brasileiro, retornar futuramente a ele, em novas abordagens.

Se, no artigo anterior, o foco foi a nossa produção cultural, neste tomarei como ponto de partida uma célebre frase do saudoso Tom Jobim, que afirmava, com boa dose de razão e lucidez, que no Brasil, fazer sucesso é ofensa pessoal. O maestro referia-se, naturalmente, à reação negativa que boa parte da nossa sociedade tem diante de conquistas, sobretudo profissionais e financeiras, de conterrâneos seus. Alguém que ganhe muito dinheiro, fama ou reconhecimento fatalmente se tornará, em alguma escala, objeto de ressentimento e maledicências, estará sujeito a sofrer boicotes dos formadores de opinião e a ser violentamente bombardeado por críticas ensandecidas e, muitas vezes, irracionais. Um caso emblemático é o de Pelé. O maior desportista de todos os tempos, que com suas jogadas impressionantes, sua garra e seu insuperável talento, arrebatou todo o planeta numa época, é bom frisar, na qual a televisão não tinha o poder e o alcance que tem hoje e as notícias e imagens não costumavam ganhar o mundo com a velocidade e o impacto proporcionado pelas conquistas tecnológicas verificadas nas últimas duas décadas. Pois bem, o fato é que Pelé, a despeito de todos os seus méritos como grande jogador e personalidade que, mais do que qualquer outro brasileiro, já assegurou o seu lugar na galeria dos heróis da História do esporte mundial, nunca recebeu do Brasil o reconhecimento de que é merecedor; em qualquer outro lugar, Pelé seria idolatrado e se converteria em alvo de certo de fãs ensandecidos e fanáticos - assim como acontece com Maradona, na Argentina -, mas o que a realidade nos mostra é algo bem diferente. E a causa disso é o fato de Pelé, o nosso grande Pelé, ter se notabilizado como um homem sério e bem-sucedido, alguém que venceu e deu um rumo consistente à própria vida. Não fosse esta a razão, como explicar o fato de Garrincha, um jogador notável, porém inferior e que sucumbiu, precocemente, à decadência imposta pelo vício do alcoolismo, ser muito mais cultuado?

O caso de Pelé é o mais ilustrativo de como o Brasil trata os seus vitoriosos por ser, a meu juízo, o mais gritante, mas há vários outros. A mágoa diante do sucesso alheio é um traço marcante da condição humana, um lado negativo e obscuro que todos possuímos, mas que, compreensivelmente, nos esforçamos para ocultar. O que ocorre no Brasil, porém, é algo mais complexo e está intrinsecamente ligado à eterna sina do país, preso há décadas num atoleiro do qual não consegue se desvencilhar. Habituamo-nos à estagnação, à condição de país onde tudo parece conspirar para torpedear qualquer pretensão de galgar alguns íngremes degraus da pirâmide social; onde a ambição é invariavelmente interpretada como uma grave falha de caráter; onde ainda prevalece uma mentalidade ibero-católica de redenção plena por meio da abnegação e do sofrimento. Nós, enquanto povo, nos identificamos com a figura do derrotado e nos solidarizamos com ele, pois reconhecemos nas suas desventuras o nosso próprio projeto fracassado de nação (no sentido como foi colocado no artigo que abre esta série). Na mesma medida, o sucesso alheio nos afronta e nos causa indignação. É como se nos assaltasse um inevitável questionamento sobre se aquela pessoa, que soube prosperar tão habilmente é, de fato, merecedora de júbilos. Inadvertidamente podemos nos flagrar perguntando: Fulano é tão bem-sucedido, conseguiu tanta coisa, tanta glória, tanto dinheiro, tornou-se alguém de prestígio, tudo isso numa terra ingrata, desigual, que maltrata sua gente e reserva a poucos o direito de usufruir suas riquezas. Não seria, então, o caso de voltarmos nossa atenção para aqueles que lutaram e lutam tanto e que, por um capricho injusto do destino, nunca alcançaram o êxito que deveriam?

Trata-se de uma inversão perfeita - e igualmente nefasta - da velha e detestável teoria norte-americana do winners (vencedores) e losers (perdedores). Enquanto nos Estados Unidos, os vitoriosos são incensados quase à categoria de semideuses, aqui se dá o mesmo com os derrotados, os marginalizados, os coitados... É quase um compromisso de cunho social, que une corações e opiniões em torno do que seria a verdadeira essência do brasileiro: um povo sofrido, ingênuo e desprovido da malícia perversa imposta pelo modelo ocidental de sociedade.

A percepção de que prosperar no Brasil sempre foi difícil - quando não impossível - é uma das grandes causas dessa entranhada mentalidade, mas é inegável que o nosso histórico complexo de inferioridade como nação, que tanto nos atormenta e nos deforma a visão da realidade tem, também, sua parcela considerável de influência. Basta observar, por exemplo, a reação das pessoas ao descobrir que o profissional tal, que está ganhando milhões e gozando de enorme prestígio em sua carreira, resolveu, por uma razão qualquer, sair do Brasil e fixar residência em Nova York, Londres, Paris, Barcelona ou qualquer recanto do planeta identificado com o mundo desenvolvido e "civilizado", que nós, brasileiros, sempre desejamos reproduzir por aqui. Embora morar no exterior, até onde eu saiba, não constitua um crime previsto no código penal, nada impedirá que o indivíduo que fizer tal opção seja visto, a partir de então, como um Judas, um verdadeiro traidor da pátria que, na primeira oportunidade, abandona a sua terra para aproveitar as delícias e o progresso faustoso do "Primeiro Mundo".

Há ocasiões, contudo, em que essa fórmula se inverte sem, obviamente, alterar a sua lógica. É quando um brasileiro, sobretudo um artista ou intelectual, torna-se uma celebridade no exterior e somente aí é descoberto pelos brasileiros. Nesses casos a boa receptividade da opinião pública estrangeira funciona como um certificado de qualidade, um aval de que aquela pessoa tem, de fato, talento e por isso foi valorizada. É meio patético um país como o nosso, mais de cento e oitenta anos após a sua independência, ainda não se sentir seguro o bastante para saber reconhecer sozinho os méritos de seus cidadãos, mas está longe de ser surpreendente. O exemplo mais recente e dramático deste descalabro foi o de Sergio Vieira de Mello. Foi preciso um atentado em Bagdá mandá-lo tragicamente pelos ares para sempre, para descobrirmos tardiamente que um dos mais conceituados e competentes diplomatas em atividade no mundo era um brasileiro.

Sou muito otimista em relação ao Brasil, apesar de tudo, e acredito que tudo isso, que todo esse complexo de inferioridade que nos leva a uma cegueira parcial diante da realidade e a uma acentuada inversão de valores vá se modificando aos poucos, à medida que o povo for se instruindo e amadurecendo e, com isso, adquirindo seus próprios referenciais; e, também, quando o país der oportunidades concretas às pessoas de progredir, sem os obstáculos da burocracia, da corrupção e de todos os percalços que tanto emperram e atrasam as nossas vidas. Quem sabe, no dia em que o Brasil deixar de sabotar o Brasil, nosso país terá a chance de caminhar por conta própria e dar mostras, espontaneamente, de todo o seu poder e grandiosidade?

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 10/8/2004

 

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