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Quinta-feira, 26/8/2004
O Livro Impresso e O Livro Virtual
Ricardo de Mattos

Se habla de la desaparición del libro; yo creo que es impossible. Se dirá qué diferencia puede haber entre un libro y un periódico o un disco. La diferencia es que un periódico se lee para el olvido, es algo mecánico y por lo tanto frívolo. Un libro se lee para la memoria. (...)

Si leemos un libro antiguo es como si leyéramos todo el tiempo que ha transcurrido desde el día en que fue escrito y nosotros. Por eso conviene mantener el culto del libro. El libro puede estar lleno de erratas, podemos no estar de acuerdo con las opiniones del autor, pero todavía conserva algo sagrado, algo divino, no con respeto superticioso, pero sí con el deseo de encontrar felicidad, de encontrar sabiduría
(Jorge Luis Borges, El Libro - Conferência)

Sobre a Decadência dos Tempos é um dos mais hilários contos do volume das Histórias Apócrifas escrito pelo tcheco Karel Tchápek. O "velho homem das cavernas" Iánetchek expressa, ao discutir com sua esposa, uma sincera indignação com os novos tempos e costumes. O idoso chefe tribal encontra-se revoltado com a substituição, pelas novas gerações, das antigas e duradouras armas de pedra por frágeis instrumentos feitos com ossos. A mulher também não se encontra muito satisfeita com o novo hábito de suas noras de tratar as peles dos animais abatidos com cinzas e não mais raspá-las com uma lasca de sílex, da forma tradicional. Quando indisfarçável a revolução trazida por um certo invento, formam-se de imediato três coros. Um deles precipita-se em declarar o advento imediato d'um novo ciclo e o outro precipita-se em lamentar a passagem do ciclo anterior. Ambos reconhecem e aceitam a inovação de certa tecnologia, apenas distinguem-se entre os que olham para frente e os que olham para trás. O terceiro coro observa que nada substitui nem é substituído definitivamente.

Da plaquinha de argila à tela do computador, o livro é um dos grandes provocadores d'estas disputas. Sua história é recheada de passos abruptos, profecias e juízos finais, com direito até ao fogo eterno. Ao contrário do que se imagina, a revolução não se deu apenas com Gutenberg. Deve-se calcular o passo dado com a substituição de placas de argila, madeira, bronze por suportes mais práticos para o texto, como o papiro e o pergaminho. Depois a facilitação da leitura com a troca gradual do rolo pelo códex. O códex nada mais é além do livro na sua forma atual, folhas preenchidas dos dois lados e coladas dentro d'uma capa.

Houve um período durante o qual o ancestral d'este instrumento que muitas vezes amamos tanto ou mais do que pessoas era pesado e formado por folhas de pergaminho costuradas dentro de capas de madeira com fechaduras. Se o livro fosse propriedade de alguma universidade, ele encontrava-se imóvel n'uma sala de leitura, acessível durante algumas horas do dia e acorrentado. O aluno copiava o trecho a ser estudado durante a aula. Se o livro pertencesse a algum particular, provavelmente estaria trancado. A obra de arte, não raro, superava o valor literário do texto. Ainda pergaminho entre tábuas, mas cada folha era ricamente adornada tanto com iluminuras às margens quanto com as maiúsculas iniciais. A capa era revestida de couro, repleta de douraduras e as posses do proprietário poderiam permitir a inclusão de gemas preciosas. Quer o livro universitário, quer o privado, eram manuscritos e escassamente difundidos. O papel, apesar de utilizado desde o século XII, demorou a impor-se.

No século XV, a revolução de Gutenberg, cujo invento permitiu edições em maior número, além do trabalho mais rápido e uniforme. Acredito que as homenagens ao inventor germânico devem ser estendidas ao italiano Aldus Manutius. Se aquele revolucionou, este conquistou. Manutius foi o editor responsável pela primeira organização de obras greco-latinas, aproveitando para a seleção e estudo dos textos aqueles eruditos oriundos de Constantinopla após o ano de 1.453. Se os exemplares particulares eram inacessíveis pelo preço e os acadêmicos de leitura restrita, Manutius permitiu que aluno e mestre possuíssem cada um o seu exemplar da obra estudada. O livro, agora portátil, poderia ser adquirido, levado para casa, consultado a qualquer hora. O leitor poderia lê-lo na cama e deixar as margens para suas anotações exclusivas. Poderia comparar obras, ir e voltar no texto, estudar sem pressa de ceder lugar a outro estudante ou mesmo de ir embora. Entretanto, Gutenberg e seus seguidores não saíram ilesos. O dominicano veneziano Filippo di Strata – quiçá a reencarnação de Iánetchek – criticou a imprensa alegando que ela "corrompe textos, publicando-os em edições apressadas e falhas, que visam apenas ao lucro" além de deturpar mentes e o próprio saber. Concluiu o frade: "A pena é uma virgem, a imprensa uma meretriz". A dedicação e o trabalho do editor veneziano são repetidos hoje pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil, presidida por José Salles Neto.

Estamos no auge da publicação de livros. Nunca se escreveu, editou e re-editou tanto. Incontáveis as pequenas editoras de vida efêmera e poucos títulos. Com discursos envolvendo argumentos sérios como a liberdade de pensamento e de imprensa, duas capas abrigam qualquer coisa, sem nenhum critério seletivo. Em meio a este frenesi editorial surge a opção apontada por alguns como a responsável pela futura extinção do livro tradicional. Trata-se do livro virtual, o que me não parece tão revolucionário assim. O que há para ser dito sobre este assunto, o historiador francês Roger Chartier já o disse n'um livro muito bom intitulado Do Leitor Ao Navegador. Concordo que não haverá opção definitiva: um não será substituído e o outro não será substituto. Para um leigo como eu, o livro virtual parece apenas um arquivo que o interessado armazena em seu computador privado, gratuitamente ou não. Ressalvo que esta possibilidade de armazenamento tem maior utilidade para estudo d'uma obra rara. Uma edição virtual de Dom Casmurro pode custar tanto quanto uma edição de bolso, se considerados o preço de liberação da obra e os pulsos gastos de telefone, em caso de conexão discada.

Já vi confusão entre "livro virtual e "livro eletrônico" - e-book. Este é o aparelho utilizável para guarda de livros virtuais. Já vi sítios com ícones informando "baixe aqui seu livro virtual", como da mesma forma já vi outros avisando "baixe aqui seu e-book". Recentemente uma revista publicou um texto apregoando as maravilhas atuais da tecnologia eletrônica de leitura. O escandaloso título era A Tinta Digital Salva As Árvores. Se pensarmos um pouco, após a leitura do texto concluímos que o título deveria ser A Tinta Digital PODERÁ Salvar ALGUMAS Árvores. No mais, tentou atrair o leitor apresentando dados práticos dos e-books e análogos: leveza, potência de memória suficiente para quinhentos livros, manutenção barata dependente de quatro pilhas comuns e acessórios como enciclopédias, dicionários internos e busca por palavras. Um item chamou-me a atenção. Alegaram que o livro eletrônico, posto ao lado do impresso, destaca-se pela durabilidade. Saliento que recebi em boas condições uns poucos livros pertencentes a uma parenta da geração do meu bisavô. Uma televisão da minha mãe não durou vinte anos. São coisas diversas, mas como sempre se aposta o máximo de fichas nas novidades, mostro porque as recebo sem fanatismo.

Acrescento que a publicação do novo livro de Paulo Coelho não condenará à derrubada mais um trecho da quase-extinta Mata Atlântica. Para a fabricação de "x" toneladas de papel são plantadas "y" mudas com este destino específico, por vezes em áreas antes devastadas, e que em determinado tempo devem atingir a altura específica para corte. Em suma, não são utilizados pela imprensa nem o mogno, nem o pau-brasil, nem outras espécies ameaçadas.

Outro argumento utilizado para anunciar a preferência gradativa pelos livros virtuais e eletrônicos é a diminuição de custos. Quem não possui o hábito da leitura não o adquirirá apenas por encontrar obras mais baratas ou mesmo gratuitas. E quem tiver vontade ou necessidade de conhecer certo livro, pesquisará a edição mais condizente com suas possibilidades ou mesmo economizará para adquiri-lo. Di-lo quem o sabe. O acesso à máquina e à rede não forma o leitor. Aqui, refiro-me preferencialmente à leitura formativa e à recreativa - na falta de melhor termo - e abandono por um instante a leitura informativa. A pessoa que, no computador do trabalho, por acaso leu ontem uma coluna da Carta Capital, amanhã lerá um ensaio do Estado de São Paulo e na semana anterior um artigo da revista Época não é obrigatoriamente um leitor nem um adepto de novas tecnologias. Falta-lhe hábito e escolha. Leu-os porque deparou com eles e interessou-se. Em resumo, vejo o livro virtual como mais uma alternativa para a publicação de obras e o eletrônico como uma facilidade a ser adotada por alguns.

Ser, de Alfredo Karras

Li recentemente meu primeiro livro virtual. Trata-se de opúsculo Ser – Be – de Alfredo Karras, escritor e cartunista residente em Cubatão. Ele é o primeiro autor pátrio a contratar com uma editora estrangeira esta nova forma de publicação. Na verdade, nem recebi a obra para leitura em computador, mas impressa em papel ofício. Lido o trabalho, precisei colocar capa plástica e espiral para melhor conservação. Texto e ilustrações juntos somam 53 páginas. A obra em si é descendente direta do famoso A História de Fernão Capelo Gaivota, de Richard Bach. O discípulo de Cubatão vai além do mestre ao substituir por pessoas aquele monte de gaivotas perdidas em metáforas e expressões de acrobacia aeronáutica, mais merecedoras d'uma carga de chumbo que de admiração. O livro de Karras alia idealismo à apreciação de correntes filosóficas - v.g., racionalismo, determinismo - e revela uma forte influência espírita. Filho de kardecista, vasculho sempre não só os volumes doutrinários, como também os ficcionais, encarregados de divulgar a doutrina. Portanto, não me foi difícil reconhecer certos sinais - irmandade espiritual, evolução dos espíritos, Lei do Retorno, esquecimento da vida anterior, escolha da evolução através da dor ou do amor, reencarnação com marcas da vida anterior - e identificar a fonte.

O livro impresso e o virtual, este melhor que aquele, retomam o velho mito platônico da caverna. A pessoa que vivia na escuridão e conseguiu descobrir mais sobre as sombras projetadas é ridicularizada quando volta para esclarecer os que permaneceram nas trevas. A gaivota que voa mais alto é expulsa do bando mas retorna para orientar as de mesma inclinação. O cavalheiro alcança certa evolução espiritual através do convívio e reencontro com pessoas de espírito superior e continua sua peregrinação de esclarecimento dos povos, sofrendo conseqüências dolorosas. A diferença consiste no fato de ser a obra de Bach um mero volume de sub-literatura, ao passo que o de Karras, tal o capricho de concatenação e expressão de idéias, pode ser uma boa introdução para adolescentes inclinados à meditação consistente. Óbvio que não basta ler a obra, será necessário esmiuçar seu conteúdo, daí o progresso do leitor.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 26/8/2004

 

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