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Sexta-feira, 20/8/2004 Ensaio de interpretação do Orkut Julio Daio Borges Para meus irmãos Diego e Carolina E lá estão meus friends no Orkut... Um ex-instrutor de um curso que fiz muito tempo atrás. Um ex-colega de escola que costumava me pegar para cristo na hora da saída. Uma paixão frustrada da década passada (que promoveu reconciliação virtual). Um ex-presidente de centro acadêmico que aceitava meus artigos na época da faculdade. Uns tantos haven't met. Uns tantos nerds. Uma ex-professora. Uma paqueradora inveterada. Uma ex-colega de cursinho que sofreu uma transformação total. Alguém bravo comigo. Uma amiga de infância. Um brother. Um quase-brother. O Albert. Uns tantos leitores. Umas quantas admirações. Familiares. Todos olham para mim agora - e gosto de pensar que me definem de algum modo. Tudo bem, é apenas um programa de computador... mas essas pessoas habitam cantos da minha memória. São afeições que se perderam. São encontros de 5 minutos numa vida de 24 horas. São parte do barro que ajudou a me moldar. Muitas não são nada mais. Têm sim uma importância histórica; mas têm tanta relevância no meu dia-a-dia quanto meus antepassados mortos. Algumas catracas da existência atravessamos juntos. Uns me puxaram para trás. Mas não posso apagá-los do meu software agora; como não posso eliminá-los da minha lista no Orkut... Outro dia, fui almoçar com um amigo dos primeiros anos da faculdade que não vira nunca mais. Ele havia abandonado o curso e nós havíamos perdido contato. Navegando não sei em que lista, não sei de que pessoa, ele me apareceu sorridente de novo, proclamando que "viver!" (assim, com exclamação) era seu hobby principal. Fomos nos reencontrar, no real world, e por uma mágica mental (Steven Pinker: "nossa natureza humana nunca muda"), foi como se a conversa houvesse parado no mesmo ponto... de 10 anos atrás. Os mesmos gestos, os mesmos olhares, os mesmos gostos. Éramos amigos de novo. E, outro dia, um vizinho de carteira do último ano do colegial queria extrair de mim confissões sexuais. Não nos falávamos há uns bons 5 ou mais anos, quando ele se mudou para a Austrália. "Você está feliz?", me perguntava com insistência a cada mensagem. Enquanto destilava seu ódio a São Paulo, exaltava sua cidade atual. A cada dia vinha um novo e-mail, como uma carta que eu aguardava de alguém que não via há muito... Outros quiseram me encontrar, mas no íntimo achei que aquela relação não merecia uma retomada. Talvez velhas relações não sejam retomadas nunca. Nunca como antes. Outra vez: é uma ilusão de 5 minutos. Uma ilusão de ainda se conhecer aquela pessoa e de poder dividir com ela algumas mínimas intimidades. É como revisitar um lugar conhecido e, em meio a lembranças, imagens e barulhos, indagar-se novamente sobre o presente, sobre o futuro. Voltar para trás e apenas se certificar de que, em algum momento, sabíamos tudo. (Hoje não sabemos mais...) Então procuramos essas pessoas como se procurássemos a nós mesmos - nelas... (Claro que, dentro de algumas, habita um "eu" triste, de um tempo infeliz, que não queremos mais lembrar. Assim esquecemos essas pessoas - e fugimos delas no Orkut...) Daqui para frente, é provável que cada vez haja menos tempo para uma convivência diária. Teremos de nos contentar com uma frase mal escrita num e-mail instantâneo. Com um telefonema mensal de meia-hora, no qual se evoca no máximo aquele dia, aquela semana, enquanto se manipula objetos ao redor - ou se trabalha; ou se dirige o carro, no meio do trânsito. As reações são pontuais e vêm em bloco - concentradas num "feliz aniversário!", num "parabéns!", num "quanto tempo!". E perdemos as nuances dos sentimentos nutridos por nós, de parte daqueles que simplesmente encontrávamos mais. Talvez o problema seja geográfico: acabaram-se os pontos de encontro. E eu não vou atravessar a cidade para ver um amigo por 10 minutos. Ou vou? Atravessar o Brasil? Atravessar o mundo? Ainda outro dia perdi uma chave e, tateando o chão em busca dela, topei com outro ex-colega. Esse fora do Orkut. "E aí?"; "E aí, quanto tempo?" - foi o que conseguimos pronunciar, antes de retomar minha busca (pela chave) e ele recolher seus pertences pois estava louco-para-chegar-em-casa. Uma semana antes, encontrei outro. Ele me reconheceu à distância, apontou, movimentou os músculos da face, demonstrando surpresa, e continuou em minha direção. Começou a contar do trabalho, e já ia me fornecer explicações pormenorizadas, quando minha namorada chegou e - desta vez - eu tive de ir embora. Por força de um "ponto de encontro", retomei a convivência com os dois. Mas as relações se mantêm tão superficiais quanto nesses (re)encontros. Compartilhamos o mesmo espaço por algumas horas, mas estamos tão ocupados com nossos afazeres que mal nos olhamos na cara. E não é culpa do Orkut. Antes que alguém entre em clima de moralismo e de apocalipse, dizendo que é por isso que o mundo vai acabar, reitero que gosto da sensação de ter algumas pessoas que me foram importantes à distância de um aperto de mão ou de um clique de mouse. E essa é a grande graça do Orkut. Poder vasculhar as próprias memórias sentimentais, através daquelas fotos e - por curiosidade, voyeurismo ou algum prazer mórbido - procurar saber como determinada pessoa está, se casou, se não casou, se mudou de lugar, se gosta das mesmas coisas, se é amiga dos mesmos de antes, se pode ser contatada... E - se for contatada (nem que seja para se dizer um "olá!") - que entenda a minha necessidade básica de cutucá-la para simplesmente proclamar "olha, eu ainda existo". Pois talvez toda comunicação se resuma ao desejo de manifestar que ainda estamos vivos - ou tentando sobreviver ao tempo que passa... O Orkut obviamente não será uma solução para nossa existência fragmentada, onde se tem de fazer um juízo de valor de uma pessoa, por exemplo, em 15 minutos. (E apostar suas fichas nela; e se arrepender, ou então apostar de novo.) Estamos apenas meio perdidos entre aquelas pessoas que avistávamos diariamente (de antes, e que agora ressurgem) e essas outras que aprendemos a apreciar na brevidade do e-mail, na dispersão da era da internet, no tempo da hipercomunicação superficial (celulares, palmtops, webcams...). O Orkut de algum jeito amarra esses dois mundos: o lento, da infância e da juventude; e o supersônico, do trabalho e da idade adulta. Um amigo, esse de verdade (antes e depois do Orkut), me disse que vai ser mais fácil para os que estão nascendo agora, e que vão crescer entre essas tecnologias todas. Será? Por enquanto, fico pensando em como administrar algumas dezenas de amigos súbitos - sendo que perdi a convivência com vários e que a técnica mais avançada, sozinha, já não me basta... Julio Daio Borges |
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