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Quarta-feira, 8/9/2004
A biblioteca pública mais violada do mundo
Ana Elisa Ribeiro

O que é o paraíso para você? Há quem imagine um lugar de clima ameno cheio de freezers de cerveja. Há quem pense num campo de futebol cheio de paquitas afoitas pelas beiradas. Também já ouvi descrições que mais me lembram o inferno. Ou aquelas monótonas, em azul e branco.

A descrição de paraíso que mais me chamou a atenção foi a de certo escritor, que disse haver livros, prateleiras e bibliotecas nesse lugar de prazeres. Curioso que isso não me tenha entusiasmado muito, a ponto de querer apenas isso na vida (ou depois), mas a idéia de haver livros num lugar sem preocupações me deixou um sorriso acautelado na boca.

As bibliotecas foram inventadas para arquivar e conservar obras escritas, evitar que fossem traçadas pelo tempo, pela falta de cuidado, pelos insetos, pela química da tinta com o papel. São lugares meio sagrados, onde circulavam, em princípio, apenas as pessoas que tinham algum dinheiro e eram consideradas leitores autorizados de certas obras admiradas ou proibidas.

Quando os livros eram manuscritos (copiados a mão por escribas nem sempre leitores), pequeníssima parcela da população podia ter acesso a eles. Eram considerados parte da riqueza e até do espólio de alguém. Depois da imprensa de Gutenberg, apesar da disseminação das obras e da relativa facilidade de replicá-las, os livros continuaram artefatos de acesso restrito.

Também outra tecnologia era restritíssima ao grande público: a leitura. Ler não era ensinado massivamente, as pessoas nem sempre iam às escolas (nem preciso iniciar meu discurso sobre as mulheres...) e não se lia em praça pública. Daí que os primeiros gabinetes de leitura fossem particulares, acessíveis apenas a um grupelho de cavalheiros discutidores de temas profundos.

Até que as bibliotecas se tornassem públicas e as obras pudessem ser emprestadas gratuitamente, passou-se muita história. Até que as pessoas fossem massivamente alfabetizadas, passou-se mais história. E mesmo com tanta água correndo embaixo dessa ponte, as bibliotecas continuam sendo o local de diversão preferido de oito entre dez traças.

Por que será que as bibliotecas públicas ainda chamam mais atenção pela arquitetura do que pelo que contêm? Aqui em Belo Horizonte, temos uma belíssima biblioteca projetada por Niemeyer. E parece que é esta última característica que faz dela algo admirável, mais do que o fato de conter ela inúmeras obras, muitas vezes antigas e raras.

E dentro das bibliotecas, em vez de se estipular apenas o silêncio sisudo e respeitoso da praxe impensada, por que não armar circos de declamação de contos e poesias? Talvez fosse um bom lugar para se empreender a leitura de textos silenciados pelas capas fechadas. Também antes de serem sepulcros de páginas, os gabinetes de leitura eram escritórios onde se lia em voz alta. Os contos orais foram registrados pelo papel, mas também podiam fazer o percurso inverso. Das páginas claras podiam ganhar vozes e inflexões. Ganhar nova vida, alternadamente com a leitura silenciosa, esta também uma tecnologia inventada pela mente humana e aprendida por aqueles que queriam ler em segredo, tomar de assalto livros pornográficos sem serem repreendidos.

Num evento de literatura, numa destas noites de inverno, presenciei uns poetas lendo poemas para um público que lotava pequenas arquibancadas. Não era prova de colégio e nem conferia prêmios em dinheiro. Era apenas um evento ao qual muitas pessoas compareceram por livre e espontânea vontade. Os poetas convidados foram pagos para estar lá, numa maravilhosa demonstração de respeito e profissionalismo, considerando-se que escrever também seja trabalho.

A platéia daqueles poetas ouvia os poemas em silêncio, mas não esta falta de som boquiaberta e pouco cefálica. Um silêncio pensante, borbulhante e ativo. E quando um poema chegava ao fim, havia aplausos e assobios, como eu só havia visto em shows de bandas de rock.

Oralizar textos escritos tem sido tarefa para quem tem aves na língua. Mas podia ser de qualquer um, a qualquer momento, em querendo... E as bibliotecas, repito, podiam ser os cantos dessa atividade tão retroalimentada: leio o que escrevo, escrevo o que ouço, etc.

E conta-me um amigo, o poeta recém-liberto Affonso Uchoa, que tem um amigo que veio para a capital, oriundo de uma cidade muito pequena no interior das Minas Gerais (só quem mora aqui sabe o que significa morar em Minas Gerais). E a cidade era mesmo de mil e poucos habitantes, sufocada entre montanhas, como quase tudo aqui. E o garoto era grande demais para aquela pequenez. Fizeram-lhe uma vaquinha para juntar dinheiro e mandar o menino para a capital, onde, presumia-se, teria mais condições de ter seu gênio bem-aproveitado.

O garoto veio, ficou uns dias passando fome e frio, fez vestibular na Universidade Federal, conseguiu moradia estudantil, deixou os cabelos crescerem, entrou para o curso de Belas Artes, fez orgulho na cidadezinha. E contam que ele era o maior frequentador daquela mínima biblioteca pública municipal. Ia lá quase todos os dias, pegava livros que ninguém lia ou leria, levava para casa as obras universais. E a menina que lá trabalhava, sempre à-toa, muito estranhava quando aquele garoto esquisito vinha devolver-lhe os livros. Disse-me Affonso Uchoa que a recepcionista chegou mesmo a perguntar ao amigo: Por que você devolve essas obras? Pode ficar com elas. Ninguém vai ler isso não. E olhava nos olhos do guri com um quê de estranhamento e horror.

Eis a história da biblioteca pública mais violada do mundo.

quem manda nascer no inverno?

o garoto deixou o útero quente e veio sentir um frio de quase 10 graus. Embora as pessoas vivam aconselhando que ele tome sol, desça para a frente do prédio, dê voltas na pracinha, seja exposto aos raios delicados de antes das 10 da manhã e depois das 4 da tarde, também é unânime que não se deve expor um bebê ao frio rigoroso. pois então fica ele sem sol e sem fixação de vitamina importante. por mim, acho que já firma bem as perninhas e não terá dessa espécie dramática de problema. mas toma vitamina por via oral e não conhece de perto o sol nas vistas. mas para acabar com o problema, colocamos no berço um sol de pelúcia, muito simpático e risonho. De cores vivas, chama a atenção do guri, que passou a brincar com o solzinho de mentira.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 8/9/2004

 

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