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Sexta-feira, 3/9/2004
Mens sana in corpore sano II
Julio Daio Borges

Existem basicamente dois momentos na vida de um homem. O primeiro quando, entre a adolescência e a juventude, de repente, alguém o chama por "moço". E o segundo quando, em algum lugar na idade adulta, muitos o chamam por "senhor". O primeiro momento é mágico, inebriante. Aconteceu comigo quando eu tinha 13 anos (acho) e esperava no portão do prédio onde morava. De repente apareceu alguém na rua e, dirigindo-se a mim, perguntou alguma coisa: "Moço, ...?". Eu achei que não era comigo mas era. Tinha deixado de ser menino, era moço a partir de agora.

Já o segundo momento é lamentável, mexe com a nossa eterna resistência em crescer e envelhecer. Quando me chamaram de "senhor" pela primeira vez, devo ter considerado apenas como uma manifestação de respeito. E era mesmo. Mas quando a coisa começou a se tornar comum e as pessoas me distinguiam por "senhor" - e não mais por "moço" - eu me senti arrasado. Não queria ser senhor e não suportava o peso da palavra. Tinha acabado de fazer 30 anos! Se tinha 20 e alguma coisa até há pouco, por que não podia ser mais moço?

Bem, não sei se foi, na verdade, uma preocupação que me paralisou por mais do que alguns minutos. Afinal eu tinha aceitado bem os meus primeiros cabelos brancos e, quando completei as tais três décadas, desisti de cortá-los (com tesoura na frente do espelho). Estava disposto a assumir a idade em todas as suas implicações. Mas certamente essas constatações externas, de que eu não era mais moço, pesaram quando, além de procurar me alimentar melhor (seguindo um certo regime), decidi encarar mais seriamente uma rotina de exercícios físicos e até - pasmem! - me matricular numa academia.

Não foi, obviamente, uma resolução tomada da noite para o dia. Tudo começou quando, impossibilitado de seguir na minha rotina de corridas e caminhadas pela manhã (por causa do "inverno" e das chuvas), minha namorada me convidou para uma semana de test drive na sua academia. Estavam fazendo uma promoção e, durante as "férias" de julho, cada aluno poderia trazer um amigo de graça por uma semana, para freqüentar as aulas e conhecer as dependências. Minha namorada estava animada e eu, que nunca fui muito fã de academias mas que vinha num ciclo de renovação (como sabe quem leu meu "Mens sana in corpore sano"), decidi experimentar como se fosse um desafio desta nova fase.

A minha lembrança de academias era ainda do início da década de 90, quando, aos 16 anos, me meti a freqüentar uma Runner aberta a algumas quadras da minha casa, em Moema. Acho que foi uma decisão minha, do meu irmão e de um amigo, pois fazíamos natação juntos, mas minha adaptação foi um desastre. Naquela época, academia era quase sinônimo de ginástica aeróbica e quase toda a grade de horários era preenchida por aulas que exigiam uma tremenda coordenação motora (eu nunca tive nenhuma), ou então por incontáveis séries de saltos e/ou "subidas de escada" (step, para os íntimos). Meu amigo queria fazer musculação e, com a sua facilidade em se enturmar, acabou ficando. Meu irmão tomou, ao contrário de mim, tanto gosto pelas coreografias que foi competir, nessa categoria, nas olimpíadas do colégio. Já eu pulei fora da Runner...

Então, quando minha namorada fez o convite para conhecer a academia dela há dois meses, eu esperava por longas e sofridas aulas de ginástica localizada, repetitivas séries de movimentos difíceis e rápidos, e aquele ambiente de homens anabolizados e mulheres de plástico. Claro, estou exagerando: minha namorada, conhecendo meu temperamento, não iria me meter deliberadamente numa fria (embora tenha confessado, depois, que temia que eu não gostasse...). Enfim, fui.

Eu, que sempre me considerei meio desastrado (ou desajeitado, ao menos), fiz então um esforço para não envergonhar minha namorada e seus colegas de academia. Fiz o possível para não entalar nas catracas; tentei não esquecer em qual armário havia guardado minha mochila; procurei não atrasá-la (tanto na chegada quanto na saída); e me concentrei nos exercícios para não parecer retardado ou ainda totalmente incapaz de realizar aquilo.

O primeiro teste, além de entrar, preencher uma ficha, colocar uma pulseira (para me "identificar", caso alguém percebesse que eu não entendia nada de academia), e se encontrar no vestiário (e em frente à sala de aula), foi uma sessão de pilates. Minha namorada elogiava essa nova modalidade desde o ano passado (quando freqüentava uma outra academia) e sugeria que eu poderia gostar, pois sabia que eu havia me metido a fazer ioga numa certa época da vida (por um semestre, não mais que isso). A professora de pilates, antes de começar, me chamou de "corajoso" e eu pensei: "É agora que eu vou me arrepender de ter aceitado esse 'desafio'...".

Mas não me arrependi. Óbvio que perdi o equilíbrio em quase todas as posições (tente depois, em casa, virar o corpo para um lado e a[s] perna[s] e o[s] braço[s] para o outro). Vinha de uma rotina de tensão e quase sedentarismo e, hoje recapitulando, penso que devo ter "travado" (feito força em excesso) a maior parte do tempo. Se bem me conheço, devo ter saído com o pescoço duro, o ombro praticamente imobilizado, mais um esforço brutal para não deixar transparecer entre os demais participantes. Fora que o pilates exige força de verdade em algumas horas (uma amiga da minha namorada diz que substitui a musculação) e, igualmente, uma capacidade de alongamento que eu devo ter perdido lá na outra encarnação... Mas eu estava feliz: apesar dos percalços, e do mal jeito, eu havia passado no teste.

O segundo teste foi, também, violento (mas esse eu que escolhi): uma aula de spinning. Dizem que, além do esforço físico, é o mais elevado índice de decibéis do planeta. Deve ser; não reparei. Estava concentrado em pedalar o tempo todo (o ideal é não parar nunca) e em seguir as ordens do instrutor - principalmente a de "subir", simulando uma situação de mais esforço, em que se aumenta a "carga", pedalando de pé e não sentado no selim. Antes de começar, aliás, percebi que alguma coisa podia ir mal quando minha namorada não conseguiu encaixar seu banco especial (de "gel", mais macio) na bicicleta que escolhi. Não havia tempo, chegáramos atrasados e tivemos que seguir. O professor conduz você por um passeio virtual enquanto banca o disc jockey, alternando uma seleção musical que pode animar os participantes. Quem freqüenta sabe que alguns deles se empolgam e disparam "u-hus", quando a música vem a calhar, e graças à sua "batida" traz mais uma dose de energia. Eu não captei, infelizmente, todas essas nuances porque estava tentando me equilibrar (de novo) - e, como já disse, me manter pedalando, pedalando... Mas me diverti.

Não houve terceiro teste, embora eu tenha pedalado em outras bicicletas (fora; sem "subida" e sem DJ), embora eu tenha me lançado na esteira ergométrica (para caminhar; sem tropeçar e sem cair - só depois...), embora eu não tenha feito musculação (antes da avaliação física, nem poderia), embora eu não tenha experimentado a piscina (era um dos meus projetos, caso nada desse certo) e embora eu tenha ensaiado algum alongamento simples (fora, mais uma vez, das aulas - apenas para não me contundir).

Ocorre, porém, que, tirando esses fatos engraçados (típicos de todo iniciante, depois percebi), e tirando o meu passado de "traumas" em academia, acabei me encontrando num ambiente que, antes (sem conhecer direito), considerava tão hostil.

Primeiro porque percebi o quanto é importante se dedicar a alguma coisa que não seja trabalho, e que não tenha nenhuma relação com trabalho, durante uma pequena parte do dia. Na academia, eu descobri uma ou duas horas (dependendo do dia-a-dia) em que me desligo de uma ocupação 100% cerebral, para me concentrar em alguns números num display que indica: a que velocidade caminho; a quantas andam as batidas do meu coração; o quanto queimo de calorias; e a quantos minutos estou do fim. Apenas isso. Tirando, talvez, os monitores de televisão, a que assisto teimosamente sem som, para passar alguns momentos só com imagens - e sem palavras.

Segundo porque esses "instantes de burrice" (muitas aspas aqui) são necessários. Não existe problema insolúvel, seja profissional, seja financeiro, seja amoroso, seja existencial, que não diminua em importância (na esfera de preocupações diárias) depois de uma sessão carregada de exercícios. O cérebro se oxigena novamente, a serotonina começa a agir, e é como se o "esboço", o "rascunho" daquele dia fosse passado a limpo. Saímos mais leves (alienados?) da academia. (Só então descobri porque são tão bem-humoradas as pessoas que trabalham e freqüentam esses centros de fitness...)

Terceiro porque a academia não é mais nenhum bicho-de-sete-cabeças. Pelo menos, a minha não é. As pessoas que lá freqüentam estão longe daquela ultrapassada competição por músculos, não se sentem disputando uma nova prova a cada minuto e tem um pouco mais de assunto do que simplesmente o "treino" do dia. Pelo que vejo hoje, são, antes de tudo, gente preocupada em se manter minimamente saudável, num mundo onde os movimentos estão cada vez mais reduzidos, com um número decrescente de espaços públicos, em metrópoles cheias, violentas e congestionadas.

E último porque, de certo modo, rejuvenesci, depois de algumas semanas de academia. Você pode não acreditar mas as pessoas voltaram a me chamar de "moço" (embora algumas, uma minoria agora, ainda me chame de "senhor"). Parece propaganda de "antes & depois", mas eu me sentia lento, pesado, arrastado (mesmo depois do regime) e hoje me sinto caminhando para um estado de mais agilidade, disposição e equilíbrio. Ainda que trabalhe menos em matéria de tempo, sei que rendo mais em matéria de produção. Defendo que algumas questões só surgem suficientemente claras depois de sessões longe da mesa do escritório, e de "referências" que remetem ao ofício. Para mim, a solução tem sido a academia. E ultimamente faço questão daquelas horas "perdidas" todos os dias...

Julio Daio Borges
São Paulo, 3/9/2004

 

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