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Segunda-feira, 6/9/2004 George Steiner e o crepúsculo da criação Humberto Pereira da Silva Dia 16 de junho comemorou-se pelos quatro cantos do mundo o Bloomsday. Neste ano, a efeméride ganhou destaque por se tratar do primeiro centenário do dia em que Leopold Bloom caminhou pelas ruelas, becos e botecos dublinenses no imortalizado romance de James Joyce: Ulisses. Parece que foi ontem, mas já se passaram 82 anos da primeira edição do romance vanguardista par excellence. Mas, igualmente, parece que na aurora do século XXI as vanguardas - como Deus e o homem - estão mortas. Com sua odisséia moderna, Joyce deu um ponto final nas possibilidades de criação. Ou, muitos sustentam, o mundo pós-vanguardas é pouco poroso à criação estética. No entanto, Joyce - e suas brincadeiras e charadas com palavras e referências no monumento imperecível Ulisses - não decretou o fim da criação estética, tal glória cabe ao dadaísta Marcel Duchamp, com seu objet trouvé, que pode ser tanto um urinol transformado em fonte quanto uma roda de bicicleta sobre um banco. Com sua composição que incorpora elementos arcaicos e vanguardistas, o erudito e o popular, o judeu irlandês está um passo atrás da irreverência dadaísta que decreta o crepúsculo da criação estética. É isso que George Steiner, professor de literatura comparada em Oxford, procura mostrar em seu Gramáticas da criação (Editora Globo, 367 páginas). Gramáticas da criação resultou de um ciclo de conferências proferidas por Steiner no célebre programa Conferências Glifford. Assim chamadas por terem sido instituídas pelo Lord Glifford em 1887, com o objetivo de promover e difundir o estudo da Teologia Natural (num primeiro momento soa estranho o nexo entre teologia e vanguardas artísticas, mas Steiner soube articular bem esses temas e cumprir o protocolo que lhe coube). As Conferências Glifford se realizam nas quatro universidades mais conceituadas da Escócia: Glasgow, St. Andrews, Edimburgo e Aberdeen. Desde seu estabelecimento, elas têm sido consideradas um dos eventos intelectuais mais importantes para a discussão de temas ligados à história e à filosofia da religião. As conferências que serviram de base para Gramáticas da criação ocorreram em 1990. A partir delas foram coligidos cinco ensaios e uma conclusão, nos quais Steiner percorre e procura responder a uma pergunta singela: que é isso - a criação estética? Como, a partir do nada, dar forma e significado ao que antes não existia? Esta indagação básica, desde os primórdios da filosofia, lhe permitirá, concomitantemente, estabelecer a distinção entre "criação" e "invenção" e defender que desde Duchamp não se pode mais falar em criação estética sem que com isso não se fique com um certo sentimento de culpa. Falar em criação estética desde então não deixa de ser, assim entende Steiner, um contra-senso, uma modalidade de heresia. A idéia que percorre as páginas de Gramáticas da criação é: qualquer que seja o ato criativo, a ele está inserido em maior ou menor intensidade uma aura de sacralidade. Criar é, de alguma forma, situar o objeto criado à semelhança da criação divina (não à toa, Gramáticas da criação toma como suportes a Gênese, o Evangelho de João, o Paraíso Perdido, a Divina Comédia, a Sophia Aeterna entre outros para aludir às diversas cosmogonias que vão do religioso ao místico, passando pelo filosófico e pelo poético). A obra de arte está para o artista assim como as criaturas do mundo estão para Deus. Esta afirmação não é verdadeiramente nova, mas é a partir dela que se pode antever porque numa sociedade de consumo, fruto das irreverências vanguardistas, não se pode falar impunemente em criação. Para sustentar esta afirmação Steiner move pedras e montes. Seu caudaloso fluxo argumentativo incorpora a religião, a ciência, a filosofia, a estética, as artes plásticas, a música, a arquitetura, a literatura, a poesia, enfim tudo que possa indicar que de mãos humanas saiu algo que antes não tinha existência. Com um fôlego polimático que deixa o leitor acostumado a tratados especializados atordoado, Steiner anda com desenvoltura por praticamente tudo de sagrado que se criou pelo homem nesses 3 mil anos de civilização para defender primazia da sacralidade da obra de arte sobre a barbárie consumista contemporânea, que se segue à invenção do objet trouvé. Um leitor mais apressado, menos paciente ou, para ficar num clichê, mais "objetivo", pode se incomodar com o excesso de informações e referências, mas logo nas primeiras páginas um leitor mais curioso e sensível percebe sem problemas que o excesso no texto de Steiner tem uma finalidade bem definida: cultura não faz mal - para aquele que desconhece uma citação qualquer de Gramáticas da criação, Steiner generosamente está incitando a que preencha a lacuna cultural (as alusões em profusão não deixam de ser um desafio: como chegar ao céu e se justificar diante de Deus por não ter terminado a leitura de Ulisses ou do Fausto com a alegação de que são livros chatos, tediosos e com passagens desnecessárias?). E os propósitos de Steiner ficam mais claros na medida em que se nota que ele exige do leitor um escopo mais amplo para que este escape de lugares comuns sobre o que se deve entender por culto a uma obra de arte. Steiner recorre, sem muitas mediações, bem entendido, e de maneira bastante indicativa a pensadores tão heterodoxos quanto Heidegger e Wittgenstein (acrescenta-se, ainda, em menor medida, Bérgson). Com esses dois filósofos, em contraste com a tradição que vem de Platão até Hegel, aprendemos que o mais importante talvez seja o que não é dito: o silêncio, pois, para um, a morada do ser, para outro, um sopro criativo, ainda, para um terceiro. Na gênese da grande obra de arte e da intuição filosófica, em oposição ao conhecimento científico, há sempre algo de estranho e inumano. No ato criativo há forças que estão além das codificações, classificações e catálogos humanos. Daí que a criação genuína não se explique racionalmente seguindo regras e critérios que estão no jogo de palavras posto à nossa disposição. Por isso, entende Steiner, a obra de arte é inequivocamente hermética, não se deixa explicar pelos cânones da linguagem e da lógica que se aplicam convenientemente para a racionalização do mundo e da vida, como o conhecimento científico. Conseqüentemente, não se pode confundir "criação" e "invenção": palavras mais ou menos correlatas, ambas têm um destino diverso quando se cultua uma obra de arte, quando se pensa no significado de um culto. A segunda, próxima do conhecimento científico, possibilita uma mathesis (inventar pressupõe tudo que possa ser descoberto ou encontrado, em suma: tudo que já existe antes de o artista colocar as mãos); a primeira, todavia, escapa ao aprendizado e situa-se no domínio do que não se pode falar ou, uma vez falado, que se confine numa espécie de solilóquio fechado (a idéia de criação não é permeável às sugestões de falsidade e artimanhas que são inerentes à invenção). Sutil e perspicaz a distinção proposta por Steiner. Aceitando-a, creio que fundamental para que não confundamos um Bach que está na performance de um prodigioso cravista diante de uma platéia ávida para ouvi-lo do Bach que, através de um sopro criativo (um élan vital, acentua Steiner, evocando Bérgson), compôs um significado para um mundo que, não obstante, está confinado à sensibilidade de quem o ouvir. Isso deve causar estranheza em quem, de um lado, confina o debate sobre o genuinamente estético ao específico (conhecer música é dar conta dos códigos impressos numa partitura ou dos desafinos provocados por um cravo desafinado) ou, de outro lado, em quem concebe a obra de arte como performance (uma música é tão mais significativa quanto mais envolver dificuldades técnicas na composição, ou ainda, as técnicas desenvolvidas por um instrumentista balizam o significado da música). Em Gramáticas da criação Steiner, sem descurar da importância do específico na codificação estética nem da maestria da execução, propõe uma outra equação: a obra de arte genuína é perene; ela sobrevive ao tempo porque faz sentido usar palavras como cultura e civilização (de modo mais direto: o significado da obra de arte está fora do tempo). Com isso ele não propõe outra coisa senão sustentar que não faz sentido afirmar que haja evolução na criação (uma discussão técnica sobre uma peça musical possibilita uma mathesis, mas não o acesso ao significado do ato criativo, por isso, às razões para sua perenidade). Ao contrário das leis na ciência - de uma mathesis, portanto -, uma obra de arte não é sobrepujada por outra que lhe está adiante no tempo, por um maior apuro das chamadas dificuldades técnicas. Se a medicina atual significa um avanço em relação à hipocrática, o mesmo não se pode dizer da música atonal em relação à tonal: Shöenberg não representa um avanço nem uma queda em relação a Bach ou Haendel (as técnicas atuais de reprodução não representam qualquer acréscimo ao que Bach e Haendel criaram). E, de modo mais enfático: para quem está acostumado a comparações, catálogos ou classificações, é um equívoco sobrepor as obras para órgão de Bach aos concertos para violino, ou mesmo dois travelings em Sacrifício, de Andrei Tarkovski, se situarmos o cinema como uma sétima arte. A criação diz respeito à obra de arte, por isso não está sujeita a convenções, classificações ou sobreposições. Todavia, outro é o modo pelo qual deve ser entendida a invenção; esta sim, condicionada às variáveis do tempo. A invenção é filha do tempo histórico em sua linearidade percebida e normativa. Mas o mesmo não vale para a criação. O épico homérico, o diálogo platônico, o romance de Dostoievsky, o plano-sequência de Godard, a paisagem de Vermeer, a sonata de Mozart não envelhecem nem se tornam obsoletos como os produtos da invenção. Em contraste, o daguerreótipo hoje não passa de uma curiosidade histórica, quando posto diante de uma câmara digital. O ato de criação implica assim na admissão de um componente de transcendentalidade; o que se segue é que, com Duchamp e os dadaístas, arte e técnica confundem-se nos discursos pós-modernistas e desconstrutivistas encabeçados por Lyotard e Derrida, por conseguinte, criação e performance (ou happenings, como queiram). Para Steiner isso representa o ponto final no significado da criação tal qual se estabeleceu em nossa cultura desde Lascoux e Altamira. Ou seja, um golpe de dados de nosso tempo é que o culto à obra de arte perdeu o significado, como conseqüência do eclipse da sacralidade do objeto artístico. Gramáticas da criação nos alerta que, com Duchamp, Kurt Schwitters e Jean Tinguely, presenciamos o ocaso da criação e, com a isso, a imersão no ready made. A obra de arte não é mais pensada no que tem de perene e sim como acontecimento. Por isso, a invenção - em sua aproximação com uma métrica - está de mãos dadas com a paródia e a negação. Quando Duchamp adiciona um bigode à sua Mona Lisa temos, simultaneamente, Da Vinci como contraponto e a premência do ato transgressivo em proveito da criação: o ego criativo cede lugar ao acidental, ao banal, à assinatura forjada. Tanto a idéia de autoria quanto a reverência ao sagrado e a perenidade tranqüila da obra de arte são postas em xeque com o mesmo golpe. A distinção entre "criação" e "invenção" proposta em Gramáticas da criação é provocativa e gera controvérsias. Nota-se sem muito esforço que seus alvos mais imediatos são os pós-modernos, os multiculturalistas, os artistas conceituais e congêneres. De maneira direta ou indireta todos são produtos da transgressão e do relativismo dadaístas. Nesse sentido, Steiner se coloca ao lado de autores como Harold Bloom e Neil Postman em sua cruzada para defender a gramática da criação. Por entender que, sem as marcas do sagrado, torna-se um profundo contra-senso (uma heresia, se tomarmos a criação em seu significado religioso) falarmos em objeto de arte. Incompleto (uma work in progress, pois) o Merzebau de Schwintters é mais representativo de nossa época do que um Rembrandt, menos por se tratar de um objeto de arte do que por se constituir num acontecimento cultural: falta-lhe a aura sagrada, que resulta do ato de criação, para se servir como objeto de culto à perfeição. Nesse ponto de Gramáticas da criação, no entanto, é cabível uma ponderação. Por que, como um Quixote pós-moderno, bradar contra dragões inexistentes? Limpar o terreno e guardar equívocos sobre a compreensão da distinção entre "criação" e "invenção" são méritos que reputo incontestes no empreendimento de Steiner. Mas, se concordarmos que a criação não ocupa mais o mesmo lugar que ocupava anteriormente (a criação, como Deus e o homem, está morta), não é menos verdade que aquilo que hoje chamamos pelo nome de obra de arte seja um marco significativo para a compreensão de nossa época, naquilo que ela tem de fútil e fugaz, como sustentaria Gilles Lipovetsky em seu O império do efêmero. Uma vez que acontecimentos culturais do século XXI como o mais novo Tarantino, uma mostra Francis Bacon na Oca, ou mesmo um desfile de moda, carecem da aura sagrada de uma obra de arte genuína (conveniente a esse respeito a performance das modelos que vestiam Jun Nakao no mais recente São Paulo Fashion Week: destruíram as roupas de papelão após o desfile), não é menos verdade que são fenômenos culturais que permitem compreender nosso tempo. Isso porque, ainda que concordemos que desde Duchamp o que temos é uma paródia constante daquilo que já existe, não podemos dizer sem cair num absurdo que sua Mona Lisa não guarde semelhança com a de Da Vinci: a palavra invenção, de fato, não é totalmente estranha à aquilo que recebe o nome de obra de arte. E se para uma Mona Lisa de bigode o significado da palavra obra de arte é usurpado em seu sentido original, ainda não se "inventou" outra para recobrir o significado que lhe cabia. Steiner, de fato, apresenta um diagnóstico suficientemente abrangente e perspicaz acerca do papel da criação na significação do culto a uma obra de arte, tal qual faz sentido em nossa cultura desde as pinturas nas cavernas; apresenta igualmente de modo inteligente e apaixonante o definhar dessa idéia e de sua relevância para a compreensão do mundo atual. Mas, mesmo que não seja sua intenção, o que fica da leitura de Gramáticas da criação é que devemos ver com nostalgia uma caravela, assim como ler um poema épico, pois ambos fazem parte de um mundo que não mais existe - outros são os materiais que compõem a cena cultural hodierna. Entendo, então, que se Steiner procura restituir o significado do culto de uma obra de arte a partir de sua tranqüila perenidade, infelizmente seu empreendimento está condenado ao quixotismo. Em contraste, para além do diagnóstico que contrapõe as ruínas de um mundo que se foi ao que se passa atualmente (que pode ou não se resumir ao uso da palavra criação), para além da nostalgia de Steiner - impressas nas páginas de seu instigante Gramáticas da criação -, há algo que considero da mais alta relevância: a perspicácia com que ele distingue "criação" de "invenção". De fato, confundindo essas duas esferas, ficamos com uma visão equívoca do significado que outrora era dado à palavra criação. Assistir a um Shakespeare, ver um Vermeer, ouvir um Beethoven deve ser algo mais que um acontecimento, mesmo hoje. Se perdermos isso de vista, ou seja, o culto à perfeição de uma obra de arte - alheia a catálogos e taxonomias - aí sim estaremos caminhando para a barbárie. Portanto, a leitura de Gramáticas da criação deve servir como alerta para que sejamos criteriosos ao vermos num mesmo espaço físico um Picasso, um Renoir ou um Jun Nakao; para que tenhamos bons motivos para separar o glamour na leitura de um trecho de James Joyce numa festa no Finnegans Bar, em comemoração ao centenário do Bloomday, da criação com que o imortal criador do Ulisses nos presenteou. Para ir além Humberto Pereira da Silva |
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