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Quarta-feira, 22/9/2004
O que você não está lendo?
Ana Elisa Ribeiro

Fui à biblioteca pública assistir a um evento em que se contavam "causos" e histórias da tradição oral. Encontrei lá um moço urbano travestido de capiau, simulando um sotaque do interior norte de Minas e alternando a voz com uns solos de violão. Uma graça o show, mas senti falta também da leitura simples, da revelação dos textos de papel.

Depois disso, fui ouvir umas leituras num velho teatro. Algumas pessoas liam em voz alta textos que eu conhecia, ao menos de ouvir falar. E das bocas dos atores saíram as vozes sumidas de Machado de Assis, Lima Barreto, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.

Na televisão, à meia-noite, me surpreende um programa em que renomados artistas aparecem dizendo contos dos medalhões da literatura, mas, também, de gente nova, viva, producente. Assim, páro, embora à meia-noite, para escutar uma história de Marcelino Freire e outra de Dalton Trevisan. Um Marçal Aquino feito por excelente ator, mas muito caricatural.

E aí vou dormir. Antes, no entanto, de vir o sono, me acomete a vontade de pensar na propagação da literatura contemporânea. Fico imaginando quantas pessoas assistiram àquele programa. Umas tantas, mas ainda poucas. Das tantas que zapeavam e foram parar ali, várias quiseram mesmo era ver um ator da Globo lendo um texto do famoso quem?. O texto que liam tinha status de coadjuvante, mas prendeu, se era bom. E a câmera de clipe da emetevê ajudou a entreter. Depois, quando leram na tela o nome do autor, pensaram em conhecer mais, em comprar o livro, talvez. Engraçado, nunca ouviram falar em um tal Marçal Freire ou Marcelino Aquino. Ou coisa assim.

Na falta de propagação da literatura contemporânea, jamais chegaremos a vender o produto livro com agilidade ou a fazer andar a fila dos grandes nomes da literatura brasileira.

Na Internet, tem-se muita literatice e uma moda de apinhar textos, mas é verdade que eles ganham velocidade de propagação. Quando viram impressos, no entanto, costumam provar que o grande barato ainda é publicar em papel e que só se vende livro no dia do lançamento, pros parentes, principalmente se a família for grande e o autor não tiver saído de casa fugido.

Mas o problema não pode ser apenas não vender. O problema maior é não circular, não se fazer conhecer, ao menos como boato. Se um notívago inveterado ou um insone zapeador tiverem ouvido aquele conto falado pela Giulia Gam à meia-noite, então aquela literatura terá se propagado... um tanto... e, com ela, o nome do autor, a vontade de ter um livro, quem sabe?

E como se propaga literatura? Ué... fazendo sobre ela programas antes e também depois da meia-noite; falando nela nos jornais impressos, eletrônicos e digitais; conversando com os autores em eventos na biblioteca pública; revelando textos pra quem estiver lá; fazendo jornalismo cultural investigativo, e não essa clonagem de listas de best-sellers e copy/paste descarado de releases superficiais.

Pra quem gosta de teorias de complexidade, considere-se que cada pessoa tem uns amigos e parentes e que, se ela se comunica, então ela pode tecer comentários sobre um tal texto que a tenha tocado. Um bom texto sempre carrega essa mágica, como um bom prato ou uma boa bebida. E então a desculpa de que não há quorum pra eventos desse tipo só faz desestimular a formação dessa rede.

Só se compra, se lê, se ouve, se vai atrás daquilo que se sabe que existe ou que se tem vontade de pesquisar. E é importante plantar pulgas atrás das orelhas dos leitores, mesmo quando eles ainda são potenciais. Essa energia se libera por inércia.

Que livros você não está lendo? Talvez esteja perdendo o vôo da madrugada que propõe Sérgio Sant'Anna ou o encarniçamento de João Filho, morador dos confins da Bahia, que a esta hora deve estar vendendo estopa no pequeno comércio do pai. E quem criou o leitor João? E quem criou o escritor João? E quem o ajudou a fazer o belíssimo percurso que o tornou artista? E quem o conectou ao resto do país e ao resto do mundo? E quem lhe leu originais e o publicou em livro? E quem disse que João teve escola boa ou curso superior?

João sabe vender farinha e escrever contos. Mas João ouviu falar de livros e os conseguiu emprestados ou furtados ou comprados a muito custo. Questão de prioridade para ele, ora. A literatura pode se propagar e deve ser incentivada a isso. Para que apareçam mais Joões que façam a fila da literatura brasileira dar um passinho à frente.

A lista dos figurões não é lá muito dinâmica. Os boatos literários enganosos são mais ágeis. Mas o que toca o leitor é problema dele, questão de experimentar. João degustou uns drummonds antes de chegar à literatura recém-saída dos fornos. E quem sabe, pela propagação, João se enfie pela boa literatura adentro? Quem sabe também Maria e Fabrício?

Eu digo a Jorge: não adianta guardar projetos na gaveta. Para isso, te dou de presente umas pastas de arquivo coloridas. Tem que publicar e deixar que se propague. E você não terá controle do que lêem, como lêem ou quando o fazem. São seus convidados, mas tomam conta da casa.

Leia-se o livro na biblioteca, na praça, no velho teatro, no cinema em ruínas, no circo, no palácio, no centro de cultura, no bar temático. O livro vem a reboque. Revele-se o que antes ficaria muito tempo guardado. Palavra não é coisa que se possa manter presa. Pense: o que você não está lendo, está perdendo.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 22/9/2004

 

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