|
Sexta-feira, 24/9/2004 Por que não estudo Literatura Eduardo Carvalho Porque, em primeiro lugar, fui traumatizado, no ginásio, por professoras frustradas, que estudaram Letras porque não podiam - ou não queriam - estudar mais nada. E, portanto, ensinavam os alunos a não gostar de Literatura: recomendavam livros entediantes e, se não bastasse, exigiam análises e interpretações frígidas, esquemáticas - que eu não sabia e não queria fazer. Fui gostar de geografia, que me apresentava um mundo mais palpável, real. Literatura sempre me pareceu uma matéria distante e abstrata - que me obrigavam a estudar apenas porque, em certa medida, complementava o estudo de História. Todos os livros eram encaixados em fases precisamente definidas, que eram marcadas pelo acontecimento político do momento. Nada mais - era a minha impressão - influenciava as decisões do personagem ou do autor. Acontece que a Literatura há anos está, neste aspecto - como ilustração de uma época -, superada pelo cinema e pela televisão. E é por isso que minhas professoras eram frustradas: porque elas percebiam isso. Elas reconheciam, ainda que secretamente, a inferioridade da literatura em relação à telenovela. Normalmente, porém, elas se recusavam a assumir - e nos enchiam com livros cansativos e inúteis enquanto, às 8 horas, grudavam na tela da televisão. E este, estou certo, não foi apenas o meu caso. Dificilmente alguém, no Brasil, teve um professor de Literatura que - no fundo, no fundo - gostasse de Literatura. Por vários motivos, mas, e principalmente, porque a forma como Literatura é ensinada, no Brasil, é extremamente chata. Talvez por um motivo razoável: porque Literatura, Literatura mesmo, é praticamente impossível de ser ensinada - se é que deve ser, numa sala de aula normal. Eu não acho: eu não acho que o estudo de Literatura em sala de aula é fundamental à formação educacional de ninguém - e esse é o segundo motivo pelo qual eu não fui, depois do colegial, para a faculdade de Letras. Porque eu acredito que o gosto literário - e por Literatura - aparece e se desenvolve naturalmente. E precisa ser assim. Com conselhos de amigos e ajuda de críticos, claro, mas sem o apoio de uma instituição dura, rígida, como uma universidade. A principal função da Literatura - a educação sentimental, digamos assim - desaparece quando a dedicação aos livros se torna obrigatória e mecânica. A Literatura, dentro da sala de aula, desconfigura-se, e perde a utilidade que tinha. Tanto é assim que, repare, já os calouros se entopem de teorias interpretativas e artigos quase didáticos, sem encostar nos clássicos originais. E esse tipo de estudo não tem nada a ver com Literatura. Ou seja: decidi me dedicar, na universidade, a um tema árido, às vezes, mas quase sempre útil. Porque outro ponto que me incomodaria, se eu fosse para uma faculdade de Letras, é a substituição da vida prática por uma imaginação artificial. Uma imaginação que a maioria dos estudantes de Letras imagina que tem. Como se estudar Literatura, no ambiente da universidade, significasse se dedicar a um mundo paralelo, com explicações e sensações maravilhosas, desconhecidas por quem não está matriculado no curso. Essa dedicação integral à Literatura - ou mesmo a ilusão da dedicação - é também limitadora. Porque a principal utilidade da Literatura, para mim, é potencializar o aproveitamento da vida prática - e esse aproveitamento acabaria, se eu me dedicasse exclusivamente aos livros. Viaje sem viagem Viaje na Viagem, de Ricardo Freire, saiu em 1998 - "há um tempão", ele diria - mas tem me divertido muito, nos últimos dias. O autor, ex- publicitário, escreve surpreendentemente bem: publicitários costumam se preocupar muito com o ritmo e esquecem que o texto precisa também, em algum momento, de conteúdo. Mas Freire lembra dessa parte: e, com uma prosa rápida, engraçada, o livro passa dicas e informações úteis a viajantes de todos os tipos, de casuais a profissionais. Suas observações são também apuradas: quando comenta sobre essa mania de conhecer o local como nativo, por exemplo, alerta os principiantes: "você sempre vai ser um turista". E um turista, insisto, com outra frase pescada no livro: "e não um astronauta". Porque brasileiros - talvez pela nossa distância dos destinos turísticos convencionais - ainda viajam para outro país com o espírito de quem embarca numa jornada intergaláctica. E os homens se fantasiam de jogador de futebol, com camisa do Brasil e pochete na cintura. Nem um astronauta acaba tão mal vestido. E o figurino da mulher o próprio Freire descreve, indiretamente, quando trata os brasileiros como "turistas emergentes (com todas as implicações vera-loyólicas do termo)". O estilo do livro é, portanto, muito pessoal, mas Ricardo Freire tem bom-senso e senso de humor - um senso de humor de publicitário, bem entendido. Sobre Londres: "Londres é a Paris dos modernos. Eu particularmente não consigo gostar, mas entendo, compreendo e dou a maior força para quem gosta." O livro é permeado por essas generalizações. Quer dizer: Londres é a Paris dos modernos para os modernos, para quem pretende ser moderno ou, como é o caso de Freire, para quem convive com modernos. Não é para mim, por exemplo - e o leitor é, em todos os momentos, estimulado a viajar para desenvolver também as suas opiniões. Viagem em revista Enquanto a viagem não chega, porém, confie nas recomendações de Freire, que em geral são boas. Como a sobre a revista Condé Nast Traveler - da mesma editora da New Yorker e Vanity Fair, para os entendidos: "a mais influente, mais bem escrita e bem diagramada das revistas de viagem." E compre guias: a maioria dos meus são Lonely Planet, mas agora os da Rough Guide, que usei na Polônia, são meus favoritos: segundo Freire, "não tão completos quanto o Time Out, quase tão alternativos quanto o Lonely Planet e muito mais doidões que os dois juntos". Doidões? São os mais bem escritos, garanto. Para ir além Eduardo Carvalho |
|
|