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Segunda-feira, 4/10/2004 Redentor, a versão nacional e atualizada da Paixão Lucas Rodrigues Pires Explicar a sinopse do filme é algo complicado, pois Redentor não tem uma linha narrativa simples, pelo contrário, devido à sua agilidade de acontecimentos, fica quase impossível dizer em duas ou três linhas a história do filme. Mas, por cima, para início de conversa, podemos dizer que Redentor traz à tona a história de um jornalista, Célio Rocha (Pedro Cardoso), que, após ceder aos feitiços da corrupção, tem um encontro com Deus e recebe uma missão - converter o inescrupuloso construtor Otávio Sabóia (Miguel Falabella) a doar sua fortuna a todos aqueles que seu negócio prejudicou. Para tanto, devemos olhar com calma para o contexto. Célio e Otávio eram amigos de infância e o pai deste tinha uma construtora. Por influência do mesmo, o pai de Célio compra um apartamento no Condomínio Paraíso, na Barra da Tijuca, um edifício ainda a construir, daqueles que se paga em anos e anos. Quando o prédio está pronto, faltando apenas a finalização de rebarbas, o negócio dos Sabóia quebra, os empregados param de receber e, conseqüentemente, de trabalhar. A família de Célio fica na espera de uma resolução da justiça, o que demora e eles acabam por morar de favor na casa de uma tia. Tudo piora quando o magnata da construção comete suicídio, o filho Otávio herda apenas dívidas, dívidas e o instinto trapaceiro do pai (vivido por José Wilker) e o Paraíso é invadido pelos moradores da favela ao lado. Acuado, Otávio chama Célio e lhe sugere um acordo para que ambos saíssem ganhando. Desviando um dinheiro escuso, num total de US$ 50 milhões, Célio ficaria com 10% e Otávio ficaria livre das acusações. O plano, claro, dá errado, o pai de Célio morre e tudo parece perdido para ele. Eis quando surge diante de Célio no horizonte do desértico cerrado brasileiro, num monte digno de Moisés, o Cristo Redentor. A aparição do Todo-poderoso a ele tem um intuito claro - fazer justiça com o dinheiro desviado. Contar mais estragaria a surpresa, mas não é mal avisar que uma nova via sacra espera por Célio. É nesse momento que o filme ganha uma energia pouco vista em um filme brasileiro recente. Possuído pela espiritualidade, Célio tem a missão de repartir com todos os que têm direito - empregados, credores do Condomínio Paraíso, ele mesmo - os US$ 50 milhões. Essa segunda parte do filme ganha um tom de épico bíblico em meio aos caos urbano e social do Rio de Janeiro, local onde todos os mundos se encontram próximos, uma grandiosidade de imagens e efeitos. Toda a ação parece levar a um único ponto - à cobertura do Paraíso em que todos teoricamente teriam sua fatia do bolo. Quase um Juízo Final, o julgamento de Cristo. Imbuído de sua missão, Célio não mais fraqueja até seu fim, já anunciado no início do filme (ele narra a história já morto, mais um narrador-personagem-defunto). O absurdo das situações, a tendência a sempre piorar, tal qual uma bola de neve pequenina que desce uma encosta e chega lá embaixo imensa, eis o grande clímax de Redentor. Ao final, a grande dicotomia do filme - materialidade vs. espiritualidade, que poderíamos dizer também na forma de injustiça/desonestidade vs. justiça/honestidade, mostra que no Brasil, mesmo sendo o maior país católico do mundo, só mesmo um milagre para transformar as pessoas. No fundo, é a identidade do brasileiro, o famoso "jeitinho brasileiro", com a lei de Gérson, tirar vantagem e sair por cima, que está sendo questionada. A visão deturpada do próprio umbigo que faz com que não vejamos nossos semelhantes, seja nos faróis, nos morros ou na favela. A desigualdade social, a injustiça social - a grande tragédia nacional - que permanece invisível, mesmo sendo vizinha de cada um de nós (não à toa o condomínio se chama Paraíso e fica ao lado do inferno que é a favela). Essa cegueira coletiva que nos engessa e que endurece nossos corações, muito disso resultado do apego excessivo e fetiche ao dinheiro (como se vê até o final do filme). Lucas Rodrigues Pires |
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