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Sexta-feira, 15/10/2004
Ideologia: você quer uma pra viver? Eu, não
Julio Daio Borges

A minha geração - que atualmente toma de assalto as letras brasileiras, seja através da literatura, seja através do jornalismo, seja através da internet - cresceu sob a polarização, entre esquerda e direita, a partir dos anos 60. Somos todos, portanto, filhos de uma juventude (em parte no poder) que acreditava num mundo dividido entre bons e maus, entre santos e pecadores, entre progressistas e conservadores (não necessariamente nesta ordem). Ocorre que o muro de Berlim caiu (1989), a URSS se desintegrou (1985-1991) e boa parte das ideologias de esquerda ruiu, para muita gente se convencer, através dos resultados (desastrosos), de que não basta tentar encaixar o homem em algumas abstrações utópicas.

Ao mesmo tempo em que foi uma tomada de consciência, de que o socialismo (ou o comunismo) puro e simples não é a solução, esse movimento se mostrou como uma chance de se banir o idealismo (aquele, pai do totalitarismo) e de se lançar num pragmatismo não-ideológico que poderia inaugurar uma nova era, menos iludida com partidos e salvadores da pátria, e mais ocupada com problemas reais. Afinal, um buraco de rua não é de esquerda nem de direita, tampouco a ameaça do apagão (no planeta inteiro, não só no Brasil), o esgotamento de recursos e de fontes energéticas não-renováveis, a miséria do terceiro e quarto mundos, o terrorismo, as desigualdades sociais, etc. São questões de segurança (inter)nacional, são calamidades mais do que públicas, são ameaças ao status quo (se ainda existe um) - que deveriam despertar a humanidade de sonhos revolucionários e exigir uma ação imediata, técnica e científica, longe do blablablá político. Mas não é assim que tem acontecido.

E o que eu mais lamento não é a geração dos 60 voltar à carga com velhas cartilhas e com velhos slogans, de 40 ou mais anos atrás, mas a minha geração - a primeira que poderia propor um debate longe dos chavões de esquerda e de direita - mais uma vez embarcar, como tantas outras, nas ideologias de tempos passados.

O que me assusta, na verdade, não é o mesmo ramerrão de esquerda, sendo ecoado por bocas que me são próximas, afinal de contas, a ideologia de esquerda sempre esteve subjacente, desde as aulas de História e geografia no primário até o apelo irresistível da rebeldia universitária, contra o "sistema" e contra os "costumes" que nos foram impostos (sic). (Quando se é jovem esse discurso cai como uma luva, e você embarca...) E até porque muitas conquistas, dos discursos de esquerda, são efetivamente razoáveis, pois, por exemplo, não é civilizado bancar o wasp (macho branco adulto) para cima de mulheres, negros e homossexuais. Existem, sim, direitos inalienáveis a todo ser humano e, embora haja exageros acadêmicos e judiciais (principalmente nos EUA), não podemos retroceder hoje em questões tão óbvias.

O que me preocupa então é uma onda fundamentalista, naturalmente de cunho religioso, para quem estamos imersos no "caos" e precisamos urgentemente regressar à "ordem". Essa gente se diz, em princípio, neutra no debate, e chega heroicamente propondo o fim de uma hegemonia (de pensamento) de esquerda, mas também abusa de palavras-chave como "tradição". É um bem-disfarçado discurso, evidentemente ideológico, que remonta à mesma onda conservadora ou neoconservadora dos Estados Unidos da América atual. (Alguns gurus, daqui, acham que descobriram a pólvora, mas, por comparação, vê-se que as idéias já chegaram empacotadas - nem digo impostas - do Tio Sam.)

Assim, é triste assistir à migração de jovens mentes brilhantes para o coro medievalista, que se diz "liberal", mas que acredita em "cura" para homossexuais (via "padres"), que tira sarro das mulheres que trabalham ("lugar de mulher..."), que ataca ferozmente um certo "ceticismo científico" (provavelmente clamando por uma espiritualização forçada e por um dogmatismo pré-Galileu, pré-Copérnico, pré-Kepler, pré-Newton...). O mais absurdo é que, embora alimentem esses pontos de vista, essas pessoas usam a internet (tecnologia) para divulgar suas teorias, não abrem mão de "transar" com suas namoradas (antes do casamento, é claro; não abrindo mão, também, da pílula) e, por último, acreditando-se muito superiores aos que antes cantavam "É proibido proibir", ressuscitando por fim um moralismo antiquado (isso ainda existe?) e defendendo, em público, a ampla e irrestrita liberdade de expressão, mas, em privado, praticando a nefasta censura prévia. (Uma gente que exalta o indivíduo mas que, na hora do aperto, age mesmo é em grupo. E dá-lhe espírito de rebanho...)

No fundo, esse retorno a uma filosofia de sistema revela a incapacidade, que muitos ainda têm, de aceitar o mundo e, em menor escala, a vida em toda sua complexidade. É mais barato comprar algumas crenças bem-justificadas logo ali na esquina e depois se esconder, atrás de escudos retóricos (testados e aprovados para a maior parte dos casos), do que pensar com a própria cabeça e encarar, sozinho, os vazios da alma e da existência humana, em maior escala. A religião, por exemplo, como disse um escritor contemporâneo, é uma providencial muleta coletiva, feita para quem quer se salvar da espiritualidade pessoal, muito mais profunda e complicada do que meia dúzia de conceitos prontos (deus, diabo, céu, inferno, pecado, expiação...), absorvíveis instantaneamente pelas massas. Do mesmo modo, as ideologias: um pacote completo, rotulando a sociedade de cima a baixo, definindo quem é amigo, quem é inimigo, e fornecendo explicações imediatas para dúvidas que, em toda eternidade, talvez não tenham mesmo solução. E esse banzo por uma visão de mundo em que era "fácil" detectar os bons e os maus, adotar comportamentos de torcida e dormir à noite tranqüilo... só pode ser nostalgia do simplismo. Até as crianças sabem que viver é um pouco mais complicado...

Em resumo, eu espero sinceramente estar errado ao supor que o número de compradores dessas "receitas de bolo" intelectuais esteja crescendo a uma taxa alarmante. Claro que sei que vamos ter de sair de alguns "becos sem saída", como o artístico, refém por mais de um século do modernismo e do pós-modernismo, - mas não acredito que a salvação esteja na ideologia e, muito menos, na religião. Não acredito também em Hegel (outro filósofo de sistema), mas quero crer que a História segue andando para frente, irmanada com a ciência, que fez muito mais pela felicidade (objetiva) do homem, em pouco mais de 500 anos, do que muitos milênios de religião. E de ideologia. Precisamos aprender a resistir a essas tentações fora de moda.

Julio Daio Borges
São Paulo, 15/10/2004

 

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