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Terça-feira, 2/11/2004
A difícil arte de viver em sociedade
Luis Eduardo Matta

Uma das características mais emblemáticas do nosso tempo - sobretudo para quem vive nos grandes centros urbanos do Ocidente - é a falta de respeito nas relações entre as pessoas e destas com o meio onde vivem. Um rápido passeio pelas ruas de uma cidade como o Rio de Janeiro é o suficiente para um olhar sensível e observador detectar, em meio ao turbilhão de cenas que o cotidiano se encarrega de banalizar, flagrantes que evidenciam a impressionante incapacidade demonstrada pelas pessoas de desfrutar de uma saudável vida em sociedade. Parece que abrimos mão, em definitivo, das prerrogativas da civilização e optamos por um retorno à idade da pedra, quando o homem, ainda na sua compleição primitiva, não dispunha de muitos atributos além do instinto e da força física.

A degradação das relações sociais chegou a um nível tal que uma pessoa educada atrai, instantaneamente, a atenção em qualquer ambiente, suscitando, de imediato, cochichos de desconfiança, admiração ou escárnio. Se a pessoa em questão for um homem, a situação piora e ele passa a ser olhado enviesado, como se fosse um alienígena. Até as noções mais básicas de polidez parecem ter sido abolidas (se é que, algum dia, estiveram amplamente difundidas). Gentileza converteu-se em sinônimo de fraqueza, carência ou subserviência; ou seja: é gentil aquele que não tem segurança suficiente e necessita desesperadamente de aprovação social. Noção de coletividade, de pertencer a um meio onde os direitos dos demais devem ser observados, virou uma metáfora risível. Ética tornou-se algo tão ultrapassado e sem espaço no mundo moderno, que as pessoas nem sequer sabem o que significa. A grosseria, a intolerância, o egocentrismo, a impaciência e a prepotência passaram a dar o tom no dia-a-dia da sociedade e foram de tal maneira assimilados, que hoje o conceito de "normalidade" (seja lá o que isso queira dizer) não pode prescindir, dependendo do ponto de vista, de, pelo menos, três destes itens reunidos.

Tudo isso tem sua razão de ser. Afora as precárias condições educacionais verificadas no Brasil, pesa o fato de termos vivido durante séculos sob a égide de um regime social rígido e implacável, que condenava a livre expressão das pessoas, submetendo-as a uma permanente e asfixiante vigilância. A um "cidadão de bem", via de regra, eram dadas duas alternativas: seguir fielmente as normas sociais e a etiqueta vigente ou manter, às esconsas, uma vida paralela (às vezes mais de uma). A tão discutida erotização da sociedade, por exemplo, não é mera obra do acaso, nem tampouco um capricho frívolo de tarados robotizados pela mídia e, sim, o preço a se pagar pelo longo período de repressão sexual, ao qual gerações sucessivas estiveram subjugadas e que só começou a ser revertido muito recentemente. É como uma enorme barragem que se rompe, de repente. O primeiro impacto é assustador: a água, represada por anos, se liberta com fúria, devastando tudo o que encontra pela frente e promovendo uma imediata mudança nos locais por onde passa. Aos poucos, ela torna a ocupar o leito do rio do qual estivera forçosamente separada, o fluxo se acalma e todo o ecossistema ao redor, alterado por conta da construção da barragem, readquire as suas características originais.

Assim como a sexualidade, uma energia muito superior à razão humana, vem tentando, de algumas décadas para cá, se libertar de séculos de amarras, as pessoas parecem ter se rebelado contra os exageros dos códigos de conduta de um passado austero e, num ato legítimo de rebeldia, renunciado a ele, em nome de um ideal de autonomia irrestrita. O modo antigo de se educar, quase marcial, foi substituído por uma perigosa permissividade e o que se vê hoje é nada mais do que uma conseqüência natural desta mudança, conjugada à loucura brutal pela qual o nosso mundo enveredou. Como pode se comportar uma pessoa criada sem limites e, portanto, com pouco ou nenhum preparo emocional e psíquico, que ao chegar à vida adulta, encontra uma sociedade ferreamente competitiva, escravizada pelo consumismo desenfreado, pela injustiça, pela violência e pelo culto doentio à aparência, tanto física quanto social? Uma sociedade que, ante o menor movimento em falso, lhe devora a alma, decreta, sem qualquer razão lógica, a obsolescência das suas capacidades e o submete a um terrorismo permanente em relação à saúde, à estética e às finanças, deixando claro que uma mínima falha no preenchimento de qualquer destes três requisitos conduzirá, invariavelmente, ao naufrágio amoroso, familiar ou profissional?

É claro que a educação permissiva fracassou, assim como o antigo modelo autoritário se revelou, igualmente, um embuste nocivo. Na verdade, o nosso sistema educacional, hoje, é de uma ineficiência atroz. Em vez de preparar pessoas para a vida, ele se limita a prepará-las para o vestibular, como se o futuro fosse apenas o mercado de trabalho. Se o mundo chegou ao ponto que chegou e sabemos, ao menos em parte, as causas disso, a única saída para enfrentá-lo e, na medida do possível, humanizá-lo um pouco mais, certamente está nas pessoas. E isso poderia começar pela implementação, em algumas escolas, de uma disciplina nova, a ser ministrada do jardim de infância ao pré-vestibular, que ensinaria como viver em sociedade.

Aulas de como viver em sociedade? Pode soar estapafúrdio, mas é uma reivindicação plenamente razoável. Nada de métodos rígidos, teorias antigas e lições de moral de teor conservador ou religioso. O ensino, na verdade, começaria aí: o professor faria valer sua autoridade, sem resvalar para o autoritarismo, mostrando a partir da própria relação com os alunos, como impor limites com naturalidade sem apelar para a violência verbal ou física. Seriam aulas práticas, onde normas fundamentais de boa convivência seriam ensinadas e estimuladas. Paralelamente, o professor abriria um importante canal de diálogo com os alunos, conversando com franqueza sobre temas caros à infância e à juventude e enfatizando, sempre, a importância do respeito, tanto no trato com os outros como consigo mesmo. Afinal, as pessoas hoje também se desrespeitam e muito. E a maioria, em geral, nem se apercebe disso.

É claro que essa proposta é uma utopia que dificilmente se concretizará com o alcance necessário. Ainda mais num país como o Brasil, onde os professores, mal-remunerados e, em muitos casos, mal-habilitados, às vezes, nem conseguem ensinar o beabá. Fica de, todo modo, a idéia e o desabafo de alguém que não se conforma com a falta de respeito que se alastra pela sociedade como uma epidemia fora de controle.

Um pop-romance de amor e angústia

Ao iniciar a leitura do romance de estréia do jornalista carioca Arthur Dapieve, De cada amor tu herdarás só o cinismo (Objetiva; 224 páginas; 2004), lembrei-me, imediatamente, de um texto do próprio Dapieve - que assina uma coluna no jornal O Globo - no qual ele falava do esperado show que Roger Waters, ex-baixista do Pink Floyd, faria no Rio em março de 2002, aproveitando para comunicar aos leitores que iria chorar quando Waters cantasse "Wish you were here", um dos grandes sucessos do Floyd, que nunca se apresentara no Brasil. Talvez pelo fato de o começo do livro se dar justamente num show de rock, no caso o que a banda americana R.E.M. fez no Rock in Rio 3, em 2001, ao qual, sem a menor dúvida, Dapieve compareceu. Não apenas por conta da sua notória paixão pelo rock, como pela forma como ele descreve os instantes finais do show - cuja energia, creio, só alguém que esteve lá é capaz de captar e traduzir em palavras a ponto de afetar quem não esteve (como, por exemplo, eu).

De cada amor tu herdarás só o cinismo, cujo título é inspirado num verso de Cartola, narra a história do publicitário Bernardino Oliveira, um quarentão que cai de amores pela jovem Adelaide em meio ao público que acabara de assistir, extasiado, à apresentação do R.E.M. Adelaide é linda, ruiva e amadurecida, mais de vinte anos mais moça que Bernardino, trabalha como estagiária na agência da qual ele é um dos principais executivos e, o melhor de tudo, adora rock quase tanto quanto ele. Bernardino, que é casado e tem dois filhos universitários, vai se deixando enredar pelo magnetismo de Adelaide. E, por causa, dela, vê sua vida, seu casamento monótono e o pouco que lhe resta de equilíbrio emocional desmoronar.

A temática pode parecer antiga, mas Dapieve constrói uma história diferente, com a qual muitos homens urbanos, certamente, irão se identificar. Bernardino é um anti-herói incomodamente real, que enfrenta situações factíveis e exprime pensamentos e sensações típicas do homem moderno, um ser em permanente conflito. A trama é dividida em quinze capítulos, cada qual equivalente a uma semana. A linguagem, na maior parte coloquial e direta, entremeada por diálogos ágeis e até mensagens de e-mail, faria do livro uma autêntica pulp fiction num estilo pop, caso o autor não tivesse resolvido introduzir alguns experimentalismos, como no décimo-terceiro capítulo, quando Bernardino imerge num angustiado monólogo interior sem nenhuma pontuação, à semelhança do que ocorre com Molly Bloom, na reta final de Ulisses, de James Joyce. Há também referências claras a um romance do italiano Dino Buzzati, Um Amor, começando pelo próprio protagonista, Bernardino, a quem a amada Adelaide chama pelo diminutivo carinhoso, Dino. O livro também se propõe a evidenciar a distância entre duas gerações, a de Bernardino - de mais de quarenta anos - e a de Adelaide e dos filhos de Bernardino - ao redor dos vinte anos -, por meio, principalmente, das preferências musicais mais comuns a cada uma.

De quebra, o livro nos fornece um simpático roteiro de redutos tradicionais da boemia e gastronomia do Rio, mostrando que o autor, além de entender de rock, também é íntimo de alguns dos mais célebres balcões e mesas cariocas. O que, por si só, já dá à leitura um tempero a mais.

Para ir além





Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 2/11/2004

 

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