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Segunda-feira, 22/11/2004 A ponte para as formigas Andréa Trompczynski Um dependente químico ou adicto é um doente muito antes de usar qualquer droga. As primeiras que experimenta são os próprios sentimentos. Embriaga-se de autopiedade ou ilusões de superioridade já na infância, culpando outros e o mundo por suas dores. Usar alguma substância conhecida como "droga" é consequência natural. Parar com elas, depois de anos de inferno para si e sua família, é um passo. Parar de intoxicar-se com sentimentos doentes, esse sim, o problemão. Serei piegas e provavelmente emocional, já aviso, porque criticar escritores que não conheço, falhas alheias e ver à distância a pimenta ardendo no olho dos outros é moleza. Faço aqui um mea-culpa, porque eu também tenho um passado escabroso. Meu início foi como o da maioria dos dependentes. Álcool, inalantes aos quinze anos, anfetaminas (na minha época eram Hipofagin e Inibex). Promessas de "nunca usarei tal droga" sempre quebradas, um avanço lento mas progressivo em quantidade e potência. Meu organismo possuía uma capacidade que me parecia infinita em suportar drogas. Enquanto muitos dos meus amigos estavam já "caindo", eu podia virar as noites sem problemas. Possuía um imã para atrair amizades de outros que usavam também. Achávamos o máximo nosso comportamento. Os bam-bam-bans da cidade. Em casa, percebiam alguns porres, meus pais davam algumas broncas e achavam que era um comportamento normal de aborrescente que eu era. Mas tudo ficou mais fácil quando fui estudar em outra cidade (ah... a capital...), fazer o terceirão e depois algum tempo de Ciências Biológicas na PUC-PR. Aulas, nem pensar. Conheci a turminha dos "loucos" e estava no paraíso. Chega a ser engraçado lembrar que líamos Castañeda, poesias do Jim Morrison e acreditávamos ser especiais. Na faculdade, comecei a deixar de lado os amigos. Preferia ficar sozinha, afundando em crises de angústia fabricada nas quais eu chafurdava, num exercício de masoquismo que até hoje não consigo entender. Então, começaram a aparecer as famosas crises de abstinência. Tremores, muitas vezes pequenas convulsões, isto quase que só pelo álcool, que era minha droga favorita e a mais acessível. Oito da manhã eu já estava saindo de casa para tentar achar algum lugar aberto onde eu pudesse comprar. Sabia que era alcoólatra e inclusive contava isso para o dono do bar, explicando assim porque é que eu estava lá "tão cedo". É que sou alcoólatra, sabe? Alcoólatras bebem de manhã. Eu aceitava minha condição e a usava como desculpa. Passaram-se alguns anos, abandonei o curso, voltei para a casa dos meus pais, parei por um tempo, casei, tive um filho, nos separamos, voltei a usar. Era cômodo. Meu filho e eu morávamos com meus pais e eles estavam assumindo a responsabilidade. Bom para mim. Havia uma droga que para mim era o cúmulo do horror, da decadência: o crack. Óbvio, foi a próxima a ser usada. Como eu disse antes, todas aquelas que dizemos, nós adictos, que nunca usaremos, serão as próximas. Meu Deus, que choque. Era muito bom. Eram cerca de dois minutos de efeito, mas que era aquilo? Não voltava mais para casa, gastava tudo o que eu tinha e o que não tinha. Nunca, em toda minha vida, tendo usado até mesmo cocaína e heroína injetáveis, experimentei uma compulsão tão violenta quanto a causada pelo crack. Há pessoas vivendo na rua que trocaram tudo pela pedra, família, filhos, casa, empregos, tudo. Vivem como zumbis, e, lembro-me, qualquer segundo de culpa ou arrependimento precisa ser anestesiado imediatamente, porque voltar é muito mais difícil do que continuar usando. Foram apenas alguns meses, mas destruíram muito mais do que dez anos de alcoolismo. No dia da maior crise de culpa, abstinência e dor que tive, contei tudo à minha família: pai, eu não sei mais o que é real e o que não é. Fomos procurar ajuda. Passei uma semana desintoxicando em uma clínica psiquiátrica. É preciso. Os primeiros dias precisam de um acompanhamento especial: convulsões, compulsões e, principalmente, o meu maior terror, os pesadelos com quantidades imensas da droga, são impossíveis de suportar sozinho. Depois, fui para uma comunidade terapêutica em Santa Catarina. Foram seis meses. Sim, metade de um ano, e para muitos é pouco, acabam ficando mais tempo. Por quê? Porque é impossível parar continuando a viver no meio em que se vivia antes, continuando a ter as mesmas companhias, andando pelas mesmas ruas e, o mais complicado, pensando da mesma maneira. Aprendi muito. Eu tinha um imenso preconceito com a própria dependência química. Com a idéia de pedir ajuda. Todos os sentimentos eram, para mim, hipócritas e as pessoas apenas desfilavam vestindo um verniz social. Que descobri não ser verdade. Eles eram reais. Choravam quando sofriam, riam quando estavam felizes. Estavam "limpos" há anos e tinham recuperado algo que foi o meu maior desafio: sentir-se humano novamente. Confiar em alguém. Rir de uma piada. Era como se eu tivesse perdido a alma e precisasse reconstruí-la do nada. Eu nem sabia quais eram as músicas que eu gostava ou minha comida favorita. Afinal, nem comia... Meus melindres dominavam em minha primeira reunião de Narcóticos Anônimos. Abriram com uma oração: "Deus, conceda-me serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para modificar aquelas que eu posso e sabedoria para reconhecer a diferença", eu quase pulando da cadeira pensando "onde é que vim parar, um bando de fanáticos!". Não eram. Eles eram normais, trabalhavam, estudavam, muitos pareciam intelectualmente interessantíssimos e estavam ali num círculo dando as mãos e dizendo que só por hoje funciona. "Baixar a crista", como diziam os coordenadores, era o mais difícil. Perceber-se nada melhor do que ninguém ali, que minha adicção não era mais bonita por não ter passado pela favela ou por problemas na rua. Ouvir com humildade pessoas que dão o exemplo, aprender a ouvir o outro, pois o adicto é um egocêntrico que não dialoga, monologa. Uma conversa é apenas pretexto para ele deliciar-se com suas próprias opiniões. Um valor comum como a verdade, para um dependente químico é sinônimo de medo. Verdade significa ser descoberto. Por mais que todos soubessem -e todos sabiam- eu continuava mentindo para acobertar o que estava acontecendo. Vigiar meus pensamentos, na prática, é muito mais difícil do que eu pensava, pois minha mente insiste em mentir para mim mesma, argumentando que não era tão mal assim. Que não era tão grande a quantidade de drogas que eu usava, que aquele tombo na rua, em plena luz do dia, nem tinha sido notado. Fui percebendo por esse e outros grupos de ajuda que conheci, que eu é que estava errada, claro para muitos, mas dentro dos quebra-cabeças cerebrais que eu construí para viver, o mundo era o das minhas regras e eu tinha todos os direitos. As pessoas não viviam assim, a vida corria em uma estrada que eu não conhecia, e não era aquela dos meus delírios. Se eu quisesse que meu filho me amasse, eu precisava estar com ele, assistir Scooby-Doo no sofá com ele e não ficar em minha cama, de ressaca, pensando em que maravilhosa mãe eu seria no futuro. Um filme em que eu era a atriz principal e que ele nunca via. Não há cura. Posso estagnar a doença, cuidando de não envenenar-me com sentimentos tortos. Muito da minha vida social morreu porque descobri que, estranho, não gostava de dançar ou de festas. Daquele monte de amigos sobraram dois. Continuo, parece-me uma espécie de "teste", atraindo pessoas dependentes, que sempre acabam oferecendo-me (não somente drogas, mas também os tais sentimentos que me fazem mal) e, pior, em horas difíceis. Tenho medo e vergonha muitas vezes, ao encontrar pessoas que conheceram esse passado, não importa quanto tempo faça. Faço um esforço tremendo para não abaixar a cabeça. Mas, como alguém poderia se orgulhar de algo assim? Eu não me orgulho. Em muitos momentos sinto-me mais perto do inferno (afinal lá eu conheço todos os becos, ruas, atalhos e os demônios pelo apelido de infância) que do céu, por estar obrigada a conhecer a mim mesma para não morrer. Foi num desses dias perdidos que um enviado dos deuses mostrou-me a única e infalível terapia: As Pontes Para Formigas. Precisamos aqui de um quintal depois da chuva. Aquele cheiro da terra molhada é estritamente necessário. Parte importantíssima é um menino de seis anos, que será o seu guia na dificílima tarefa de construir pontes para formigas, a nossa terapia de sucesso. Ele lhe mostra como a chuva fez valas que ficaram úmidas e as formigas já não podem passar. Espalha uns farelinhos de bolacha Maizena nas duas margens da vala - que, explica o pequeno mestre, elas adoram. Pede que você ponha um palito atravessado como uma ponte por cima da valinha que dará então acesso ao formigueiro. Imprescindível que seja um palito de picolé de leite condensado comprado do garoto que passou tocando flautinha no dia anterior, chamado respeitosamente de O Picolezeiro -um tipo de intermediário místico- ou não funcionará. Sente-se e observe. Sua iluminação pode demorar um pouco. Elas se comunicarão, diz o menino, na língua das formigas, avisando umas às outras que há comida e acesso ao formigueiro novamente. E, se você prestar muita atenção, vai ver uma delas olhando para os gigantes incompreensíveis com gratidão de formiga (este estágio não consegui atingir pela enorme distância evolutiva entre o guia e eu, acho). Demoram um pouco para se adaptar às mudanças ocorridas, mas conseguem. Em silêncio você compreenderá tudo o que se perguntou a vida toda e buscou em tantos lugares diferentes, nunca encontrando. Era tão simples. Perdi tanto tempo, o menino e as formigas estiveram sempre ali. Andréa Trompczynski |
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