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Quinta-feira, 25/11/2004
Uma janela aberta para o belo
Adriana Baggio

Os caminhos pelos quais a gente passa todos os dias, a pé, de carro ou de ônibus, parecem sempre os mesmos. A rotina faz com que não prestemos atenção neles. Não existem casas, prédios, pessoas, praças, e sim manchas de casas, manchas de prédios, manchas de pessoas e de praças. Elementos percebidos só no conjunto e não na sua singularidade.

No entanto, algumas circunstâncias podem nos fazer prestar atenção naquilo que antes passava batido. Um exemplo são os engarrafamentos, o paradoxo de um mundo cada vez mais apressado. Nunca temos tempo de parar, observar o que está em volta, admirar a natureza e as belezas que conseguem sobreviver ao caos da cidade. Mas quando o trânsito pára, não tem jeito: só nos resta a distração dos carros, pessoas, casas, prédios e de todos os representantes da urbanidade que nos cerca. Reparamos nas pessoas, nos riscos que machucam as latarias dos seus carros, nas roupas dos pedestres, os únicos que conseguem evoluir nesse fluxo estancado. Escaldados, reparamos também nos potenciais assaltantes que podem vir a nos abordar. Mas não há prudência que sobreviva a alguns minutos de trânsito parado, e logo esquecemos dos pedintes e dos trombadinhas e passamos a nos concentrar totalmente nos estímulos que a rua entupida e parada nos oferece.

Curitiba tem uma rua que, no final de tarde, materializa a descrição acima. Os carros chegam de uma grande avenida, de fluxo tão rápido quanto os radares permitem. Depois de um viaduto, a ampla avenida transforma-se na rua 13 de Maio. De repente, sem aviso, o que parecia o paraíso do crepúsculo - uma avenida onde os carros andam - torna-se um festival de freadas e quase batidas nos que já foram pegos pelo engarrafamento. Bem-vindo à 13 de Maio!

Apesar disso, a rua é simpática. Meio safada mas com um olhar inocente, como as moças de vida fácil da pudica Curitiba de antigamente. Ainda restam alguns prédios históricos ladeando o asfalto, que dividem espaço com teatros, livrarias, brexós, lojas de móveis usados. Ela termina no Teatro Guaíra, um ótimo fim para uma rua como essa. Mas até chegar lá, muitos minutos são gastos para percorrer o pouco mais de um quilômetro do seu comprimento.

De tanto pegar esse engarrafamento da 13 de Maio, já me distraí muito com os cartazes das peças, as placas do comércio e as pessoas que andam pelas suas calçadas. Quando o nível do horizonte já não me apresentava novidades, passei a olhar mais para cima. Depois de alguns metros de prédios baixos, forma-se uma espécie de portal com dois edifícios altos, um em cada lado do cruzamento da rua com a movimentada avenida que vem do Palácio Iguaçu. Consigo ver esses edifícios de longe, já que alcançar esse cruzamento é um processo muito, muito lento.

Nunca havia reparado nessa construção. Deve ser da década de 1970. Lembra um grande caixote de cor indefinida, onde moram muitas pessoas. A fachada não parece muito limpa. É o tipo de lugar que talvez abrigue pessoas velhas, que foram morar ali quando a região era bonita, segura e valorizada. Hoje, quem quer morar no centro? Só ficaram os que não tiveram outra opção.

Os apartamentos têm janelas de velhas esquadrias de ferro e varandas com grades idem. Nenhum detalhe arquitetônico, nada que torne esse prédio um pouquinho mais encantador. No entanto, se observarmos bem, o que só é possível se você está preso ou presa em um engarrafamento, parece existir um oásis naquele edifício tão deprimente.

Um dos moradores decidiu que não precisaria ser como os outros. Por outro lado, não poderia destoar totalmente do conjunto. Conseguiu superar esse desafio pintando a parede externa do seu apartamento com uma cor tão indefinida quanto a do prédio, só que mais nova. Deve ser uma mistura de marrom com verde-oliva, uma cor que exige boa capacidade de abstração para ser imaginada a partir de uma descrição assim. Além de pintar a parede, o morador trocou as velhas esquadrias de ferro por modelos de alumínio. E as grades da varanda, que também são de ferro nos outros apartamentos, foram trocadas por uma estrutura de alumínio e vidro temperado.

Falo a todo momento em "morador", no masculino, não pela generalização permitida pela língua portuguesa, mas porque eu realmente acho que é um homem que mora lá. As cores e os materiais escolhidos para a reforma que ele fez no apartamento são modernos, sóbrios e elegantes. Pelo senso estético e de adequação, talvez seja arquiteto ou designer.

Aquele apartamento com pintura nova e esquadrias de alumínio destoa da falta de cuidado que caracteriza o prédio em geral. Observando isso, lembrei de uma dessas frases edificantes que fala sobre mudarmos o que está ao nosso alcance, já que não podemos mudar tudo. A sensação de impotência muitas vezes faz com que a gente se acomode e mantenha um padrão de atitude que não é o que gostaríamos de ter. Mas já que todos se comportam mal, de que adianta ser diferente?

Só que essa idéia de que cada um pode mudar o seu entorno se mudar pequenas coisas vai muito além do espectro da auto-ajuda. Na verdade, é o mesmo princípio do programa Tolerância Zero, na prefeitura de Nova York, para diminuir a incidência de crimes na cidade. Combater com efetividade pequenos delitos, como furtos de carteira, vandalismo, vagabundagem e prostituição, acaba por inibir crimes mais graves. Esse programa, por sua vez, tem base em uma teoria descrita no livro O ponto de desequilíbrio, de Malcom Gladwell, cujo tema já serviu de inspiração para uma coluna minha aqui no Digestivo.

Ao melhorar o aspecto externo do seu apartamento, o morador do edifício pode não conseguir mudar o prédio todo. Mas isso não o impediu de fazer as mudanças que achava necessárias para sentir-se melhor com sua casa. Já pensou se cada morador tivesse a mesma atitude? Tornaria muito mais agradável para nós, motoristas, suportar os engarrafamentos de final de tarde da rua 13 de Maio. E a fachada do velho edifício combinaria mais com a bela vista da cidade que aquelas amplas janelas proporcionam aos seus moradores.

Adriana Baggio
Curitiba, 25/11/2004

 

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