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Sexta-feira, 17/12/2004
2004 foi um ano ruim, mas nem tanto
Paulo Polzonoff Jr

Definitivamente, 2004 foi um ano ruim. Não que tenha sido um ano desprezível, daqueles que a gente pensa em jogar na lata do lixo. Nada disso. Houve muitas coisas boas. Maravilhosas até. Não foi um ano de especiais tragédias nem nada. Só foi um ano ruim. Que está acabando.

Para mim foi um ano em que a esperança foi posta à prova em todos os dias. Não me orgulho em dizer que em várias ocasiões ela perdeu. Ou titubeou, o que dá no mesmo. Não se trata daquela esperança pasteurizada que se vende nas melhores igrejas do ramo. Trato aqui de uma esperança personalíssima, que sempre norteou minha vida. Não nego que sempre fui um homem de sorte. Continuo sendo, claro, mas às vezes a coisa degringola. Ou, por outra, às vezes eu não consigo entender as notas deste fado.

Fazendo uma rápida retrospectiva, constato que meu ano esteve divididinho ao meio: de janeiro a junho e de julho a dezembro. Nos primeiros seis meses, trabalhei como editor de livros. Lancei apenas dois títulos no período. E quase vi ir para o ralo um casamento de mais de quinze anos com a literatura. Tive ganas de ver minha estante virar fogueira. Mas passou, passou, passou.

Acho que depois destes seis primeiros meses, a palavra literatura ganhou outra conotação para mim. A crença nos bons homens que escrevem livros já não existe; menos ainda a crença nos bons homens que publicam livros; menos ainda a crença nos bons homens que vendem livros; e, por fim, menos ainda a crença nos bons homens que lêem livros.

Foi ruim, muito ruim. E difícil. Como se estivesse às portas de Berlim no final da guerra, tive de tomar decisões rápidas. Parei de escrever crítica literária. E, por fim, desisti da edição de livros. Sábias decisões, ainda que insistam em me contradizer. Pior ainda são os que acreditam que estou apenas "dando um tempo", que vou amadurecer e voltar. Sinto se os desaponto, mas não: não volto a escrever sobre livros a não ser informalmente, de amigo para amigo, do jeito que ando fazendo.

Sempre quis ser crítico literário. Fui. Por longos quatro anos, fui. Ou cinco, já nem sei. Li muitos livros. Houve um mês em que li dezoito livros. É coisa demais para qualquer pessoa. Fiz amigos, fiz inimigos. Escrevi laudas e laudas que já hoje não existem senão nos arquivos da biblioteca - mandei tudo para o lixo do computador. Errei muito. Acertei também. Na minha ingenuidade juvenil, propus que a crítica fosse lida como uma opinião pura e simples, isenta de sentimentos pessoais. Falhei e falhamos e é passado.

Amante dos livros, caiu-me do céu a oportunidade de ser editor, isto é, de pôr nas mãos dos bons leitores os livros que me agradavam. Uma ilusão atrás da outra: não há tantos autores bons assim; os autores estão cheios de ambições vis (exceções existem, claro); e, por fim, publicar e vender livros no Brasil é uma atividade estranha, sem qualquer romantismo nem muito menos lógica. Só não digo que é uma atividade mafiosa porque sei que há muita gente boa publicando livros por aí. Mas que é uma atividade mafiosa, lá isso é.

Foram duas grandes decepções em seis meses. Decepções ligadas àquilo que eu achava ser a minha vocação: livros. Quando me dei conta, estava odiando não só escrever, como também ler. Passei meses (dois já é plural) sem pegar num livro. Comecei a ter azia quando percebia as negociatas por trás do negócio. Enfim, nestes seis meses acho que me tornei homem da pior maneira possível: perdi todo o romantismo e fiquei apenas com folhas na mão.

Depois destes seis primeiros meses que eu ouso chamar de trágicos, viriam seis mais trágicos ainda. Mas há nesta minha concepção de tragédia muito drama e nenhuma verdade. Porque 2004 foi um ano ruim, sim, mas não um ano sem propósito. Foi mais como uma palmada de mãe e pai: necessária, mas que a gente sempre pensa que poderia ter sido evitada. Ainda hoje, no finalzinho do ano, sinto as dores da palmada de 2004: um ano que poderia não ter sido como foi. Há lições que a gente não precisa aprender com tanto sofrimento. Ou será quê?

Pois nos últimos seis meses do ano eu me descobri como jornalista. Pela primeira vez em muito tempo. Tive algumas conversas comigo mesmo a respeito do assunto, me lembrei do porquê de ter escolhido esta profissão, me lembrei dos elogios dos professores e, novamente, da fé. E me empenhei em ser jornalista.

Quem conhece os pormenores desta história deve estar se perguntando como eu posso dizer que 2004 foi um ano ruim. De fato, consegui muitas coisas boas. Escrevi matérias interessantes. Entrevistei gente que prezo. Apertei a mão e olhei bem dentro dos olhinhos pequenos de Joel Silveira. Ganhei um dinheirinho. Pensando pragmaticamente, tudo foi muito bom, obrigado. E continua sendo. O problema é que não sou totalmente um homem pragmático.

Foi um ano de expiar culpas, de encontrar no passado motivos para se arrepender e ser punido. Foi um ano de ter muitos sonhos não realizados, numa proporção nunca antes atingida. Houve semanas de choro e de esterilidade. Passei vários dias em frente ao computador, me perguntando como sairia da enrascada em que tinha me metido. Confesso que me arrependi algumas vezes de ter ousado vir para o Rio de Janeiro. E por isso peço perdão.

A verdade é que todas as vezes em que eu abaixava a cabeça, algo de bom acontecia. Algo momentâneo. Uma palavra, um telefonema, uma frase num livro, uma notícia no jornal. Amigos me deram bons conselhos que eu tentei e ainda tento acatar com a sabedoria do curumim que escuta o pajé. Dois mil e quatro foi um ano sofrido, de muitas dúvidas. Mas o bom é que a tendência das dúvidas é de que elas sejam esclarecidas logo.

O ano foi um ano ruim, mas eu aprendi que mesmo assim a vida pode ser boa, ao lado da mulher que eu amo, com meus gatos, uma paisagem deslumbrante, livros para me fazer sonhar, forró na noite de sábado entre peões de obra e caixas das Lojas Americanas, gritos de gol e xingamentos no Maracanã, almoço com os amigos e principalmente aquele brilho nos meus olhos. Aquele, que eu nem sabia que tinha. 2004 foi um ano ruim, mas eu descobri que tenho um brilho nos olhos. Sorte de quem conseguir percebê-lo em todas as suas matizes.

Nota do Editor
Paulo Polzonoff Jr. assina hoje o blog O Polzonoff, onde este texto foi originalmente publicado. (Reprodução gentilmente autorizada pelo autor.)

Paulo Polzonoff Jr
Rio de Janeiro, 17/12/2004

 

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