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Quarta-feira, 29/12/2004
Editores e editores
Ana Elisa Ribeiro

Há alguns anos que venho me dedicando aos livros. A lembrança mais remota me vem ainda das paredes de madeira da casa da avó. E dos títulos da infância, em papel e em vinil colorido. E depois as obras da escola e as do vestibular. As da faculdade, as da pós-graduação. E as mais importantes não foram essas, das listas de obrigação, mas as que enfiei na mochila e li dentro do ônibus. Aqueles 40 minutos de travessia me levavam a tantos lugares...

E então li livro que queria e que não. E fui fazer uns livros numa fábrica que ganhava prêmios de ilustração e de projeto gráfico. Aprendi como os livros são feitos e decidi migrar do maior para o menor detalhe: como os textos são feitos. Estudei a leitura e o leitor e o escritor. Passei a me apaixonar pelas possibilidades.

Nessa viagem de papel e pixel, conheci editores e editores. Lidei com comerciantes e com astronautas. Lidei com poetas e com mercantilistas. Às vezes incongruentes, às vezes desmerecidos. Editei uns textos e conheci a Internet e sua fronteira movediça.

O Digestivo Cultural caiu do céu. Pintou na voz de Julio Daio Borges e me fez organizar minha escrita em quinzenas. E isso, excepcionalmente, me dá um prazer de menina.

Escrever é mel. Mas escrever para o Digestivo tem sido janela do entardecer. Aquela hora em que eu queria estar na sacada comendo maçã e, no entanto, estou presa na empresa mascando capim. Julio Daio me trouxe umas flores e disse pra eu entrar com delicadeza, disse pra eu ficar à vontade e lhe ofereci umas balas de açúcar.

Escrever aqui é um prazer. Narrável.

Os mais
Quando o ano termina e começamos a ganhar calendários nas lojas, algo parece mudar. Pensando linearmente, sabemos que as coisas são mais ou menos as mesmas, mas me acomete uma vontade imensa de mudar o que está ruim, de abandonar pocilgas que me deixam triste, retomar velhas amizades, repensar o tempo, a distribuição dos compromissos e das prioridades. Dá vontade de administrar melhor.

Escrever sobre 2004 é curioso, porque o ano não começou. A gravidez deixa tudo em stand by, assim como as oportunidades que a sociedade ainda deixa de oferecer às mulheres prenhes. Também a mágoa e a angústia tornam o tempo uma questão psicológica que a física não explica. 2004 foi o vento, foi a saudade, foram uns meses de justiça.

Tudo o que vinha à mente era que 2005 chegaria e que seria melhor. E então é um esforço pensar nas listas de "melhores coisas" do ano que, enfim, termina. No entanto, três delas saltam diante de mim e me chacoalham: o menino de 6 meses que me acorda com resmungos todas as manhãs, o homem de 31 anos que acorda junto comigo para cuidar do mesmo menino e a escrita que me alivia o tempo todo, de cujo prazer esse mesmo homem também compartilha, em longas noites de batuques, cada qual em seu computador, de costas um para o outro, mas com os corações amarrados.

É nesse sentido, o de escrever sempre, que o Digestivo Cultural (pilotado pelo amigo querido Julio DB) é um dos melhores acontecimentos de 2004, numa perspectiva muito pessoal, de colunista do site. Junto com isso, a realização do DC em papel, dentro da revista da Fundação Getúlio Vargas (SP). Um prazer abrir as páginas e ler na mão.

No entanto, é possível falar do Digestivo numa perspectiva mais ampla como um dos melhores sites de cultura da Internet brasileira. Um projeto laçado e domado pelo editor persistente e determinado que toca este celeiro de gente apaixonada.

2005 já começou nos bastidores do DC. O setup acusa os primeiros textos de janeiro. Vamos em direção à fantástica produção, dia a dia, de um espaço cultural sincero na Internet.

Conto
amassava as empadas com a mão. massa podre. quebradiça e engasgante. amassava com o indicador e, às vezes, com o polegar. compunha uma massa amorfa, ora com gosto de queijo, ora de palmito velho. mas não comia. [metáfora da vida que levava] embutia vontades nos dedos. a cara de um, o peito de outro, o sorriso do primeiro, os cabelos do décimo terceiro, a silhueta do último [quisera fosse o primeiro] não-vontades na palma da mão pequena. coca-cola gelada e o bolo de empada descia. limpava. e a alma continuava imunda. era primitiva. só sabia comer com as mãos, aos nacos, devagar, esquartejando. caçava a empada, matava, picava, colocava pequenos bocados na boca de carnes vermelhas, engolia e bebia. enquanto isso, criticava em silêncio a sandália de uma, a blusa da outra, a cor dos cabelos de uma terceira. e não estava ali. sozinha que nem número primo. sentia o ar frio. não tinha consciência da respiração. não sentia dor. os olhos ardiam um pouco. não ouvia. comia a empada, o que era o resumo do instante. às vezes o instante é precário e o resumo é ridículo. é assim que tem sido.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 29/12/2004

 

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